segunda-feira, agosto 13, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 49

Estas passagens em que Aquilino fala mais de Cervantes que de D. Quixote e de Sancho Pança, em que vai escrevendo sobre a sua posição sobre a religião, as suas relações com a Inquisição, ajudam a perceber o tempo em que o livro foi escrito e como o autor vivia uma faceta fulcral desse tempo. Lá está, nas páginas 248 e 249:
Um pretenso retrato de Cervantes que tem sido muito discutido
_________________________________

Miguel de Cervantes Saavedra era um velho católico, meio ralaço quanto a praticar os actos de culto, o que lhe facultavam seus filactérios de godo, e versando os casos da Santa Inquisição com uma sem-cerimónia doméstica, que significava ser aquele um assunto julgado e aceito nos seus hábitos e consciência. É evidente que semelhante atitude de um dos homens de letras mais notados no primeiro quartel do século só podia aprazer, como condicente, à política da mesma Inquisição, para não dizer à sua ética. Em verdade a terrível alçada, antes religiosa que profana, pois que o seu hibridismo, mais aparente que outra coisa, provinha precisamente da confusão de funções que ao tempo caracterizava o poder, com o que se têm logrado os simples, ou aqueles que não desejam mais que ser logrados, tinha-se identificado com o ser espanhol. Uma perfeita anastomose. Os grandes homens não se envergonhavam, como Lope de Veja, de assoalhar a dignidade de familiar. Rodrigo de Cervantes à sombra do pai, que era juiz no inventário dos judios presos e penitenciados, desempenhou, ao que se depreende, qualquer cargo no tribunal do Santo Ofício de Córdova. O filho não era, pois, alérgico à instituição. O espanhol, na generalidade, acabara por considerá-la tão consubstancial ao curso da vida e necessária como hoje no nosso mundo policiado o papel mundificador de uma piscina.
(…) As alusões à Inquisição, no D. Quixote, nas comédias e entremezes, são bastante frequentes e traduzem esta naturalidade, estado de interpenetração que seria inexplicável doutro modo. Não há facécia, nem desprimor, nem insinuação por parte de Cervantes quando se refere a ela. É o tu cá, tu lá das velhas intimidades. Chama-se tratar um negócio em mangas de camisa.

_______________________________

... como se têm feito cair em logro os simples, ou aqueles que não desejam mais que em logro cair e nele se deixarem estar... Por outro lado, "o medo guarda a vinha" é fórmula usada ao longo dos tempos por quem detém o poder e que, para o deter e reter, faz dele uso e abuso. Cervantes não seria um exemplo no que respeita a virtudes cívicas, qualquer o tempo e os critérios, serviu-se de artes e manhas para publicar o que publicável fosse do que e como ia escrevendo. Releve-se o homem por mor daquilo de que foi autor e a nós chegou, e motivo foi para o que Aquilino lhe veio acrescentar.

Nenhum comentário: