domingo, junho 13, 2010

A arte de morrer longe

O mais recente livro de Mário de Carvalho (Caminho, Fevereiro de 2010, 125 páginas) lê-se (li-o!) com muito agrado.
O escritor domina a técnica de... conversar com o leitor enquanto vai contando a história. E até parece, por vezes, que se desinteressou da históra que nos está a contar para conversar connosco. Ou para ter prazer de estar a escrever.
Mário de Carvalho é um escritor que mostra ter um enorme gozo no que faz, no que fez a sua profissão, na escrita. Tanto que até pode acontecer que se esquece do que está a contar e a quem. Mas logo recupera.

A tartaruga foi morrer longe. Aquele casal reencontra-se. Contra tudo, contra todos e contra eles próprios.
O autor também.

sábado, junho 05, 2010

João Aguiar

A notícia da morte de João Aguiar surpreendeu-nos (como todas as notícias de mortes) e doeu-nos.
Não era dos nossos amigos, não tínhamos contacto com ele há alguns anos, nada dele sabiamos nem procurávamos saber por lhe sentirmos a falta. Sentimo-la agora que soubemos da sua morte.
Foi um dos muitos convidados a vir à Som da Tinta, às nossas iniciativas, às "feiras do livro" em que colaborávamos com escolas e com escritores. E foi, sempre, nos contactos preparatórios e nas viagens que o trouxeram a Ourém, um homem exemplar. De simplicidade, de simpatia, de profisssionalismo. Como escritor que era.

Pessoalmente, como leitor, "conheci-o" pelo excelente "A Voz dos Deuses", de 1984, li outros livros seus que não me desiludiram, e gostei muito do "Diálogo das Compensadas".

Aqui fica este registo. De boas recordações. E homenagem.

sexta-feira, junho 04, 2010

Sobre a ordem (e a desordem...)

Mais um pouco de Brecht (como só ele!):

(...)
Kalle
(…) A ordem não consiste em economizar…
Ziffel
Claro que não. A ordem é o desperdício metódico. Tudo o que se abandona, que apodrece ou que é destruído, deve ser registado numa folha, com um número de referência: é isso a ordem. Mas essa vontade de ordem é, antes de mais, pedagógica. Há um certo número de coisas que são absolutamente irrealizáveis pelo homem se ele não as faz dentro das regras: as coisas absurdas.
(…) Por outro lado, nos tempos que correm, você não pode manter um pouco de humanidade sem alguma corrupção, o que é uma forma de desordem. Existe humanidade onde se encontra um funcionário que se deixe untar as mãos. Pode mesmo acontecer que com um pouco de corrupção você consiga que lhe façam justiça (…) se os regimes fascistas reprimem a corrupção, essa é bem a prova de que são desumanos.
Kalle
Não sei quem disse um dia que a merda não é outra coisa senão a meteria que não está no seu lugar. (…) Eu, no fundo, sou pela ordem. Mas um dia vi um filme do Charlie Chaplin em que ele metia a sua roupa toda numa mala; depois de ter tudo metido lá dentro, ele fechou a mala. Mas uma grande quantidade de pedaços de roupa ficou de fora, o que fazia a desordem; então, ele pegou numa tesoura e, pura e simplesmente, cortou as mangas, as pernas das calças, as meias, em resumo, tudo o que transbordava da mala fechada. Esta maneira de fazer deixou-me espantado. Vejo que você não dá grande valor ao amor pela ordem…
Ziffel
Eu limito-me a reconhecer as imensas benfeitorias do deixar-andar: milhares de pessoas devem-lhe a vida. Em tempo de guerra, muitas vezes bastou um ligeiro afastamento do que eram as ordens para salvar a vida de um homem.
Kalle
É verdade. O meu tio estava numa trincheira, Argonne, quando os soldados receberam a ordem para recuar e a “toca a mecha”. Em vez de obedecer sem pestanejar, eles resolveram, antes, comer as batatas que estavam nas brasas: foi assim que foram feitos prisioneiros, e portanto salvos.
Ziffel
Ou ainda veja lá o exemplo de um aviador. Estava tão cansado que não conseguia ler bem o quadro de comandos. As suas bombas caíram ao lado de um imóvel residencial em vez de acertar no alvo: cinquenta pessoas tiveram a vida salva. Está a ver o meu sentimento? Os homens não estão suficientemente maduros para uma virtude como o amor pela ordem. Para essa virtude, a sua razão não está suficientemente desenvolvida. Eles atiram-se para empresas idiotas: só a incúria e uma certa anarquia na execução podem preservá-los do pior.
(…)
Kalle
Podíamos resumir a coisa assim: onde nada está no seu lugar, é a desordem; onde nos lugares certos nada está, é a ordem.
(…)

quinta-feira, junho 03, 2010

Exilados, Emigrantes, Pátria - lugar de exílio e de migrantes

Quase me zango comigo cada vez que aqui venho. Como quem visita um canto dos seus lugares.
Mas, se calhar, é porque me custa, porque me doi... Por aquilo que o/a Som da Tinta não é e podia (e devia) ser. Sei lá...
Por outro lado, se queria que fosse o canto guardado para falar do que vou lendo, ou para deixar notas sobre livros, leituras, revela que estou a dar pouca importância ao que, para mim, é tão importante. Até parece que não estou a ler. E acontece que não sou capaz de estar sem ler. Agora, leio o último do Mário de Carvalho e estou a gostar. Breve terminará o gosto desta leitura e prometo(-me) aqui vir. Mas também estou a ler o Dialogue d'exilés, do Brecht, é um verdadeiro encantamento.
É uma edição francesa, de 1965, da primeira obra de Bertolt Brecht publicada, em 1961, depois da sua morte em 1956.
Num café de uma gare de caminho de ferro, dois alemães exilados conversam, pasando da filosofia de Hegel à pornografia, do papel da virtudes cívicas à necessidade da ordem, dos métodos de educação ao prazer que dá pensar (ou não dá!). Sempre com o seu exílio comopano de fundo.
Ao ler, levantando frequentemente os olhos do papel, fico a pensar (como e sem prazer) na Pátria como lugar de exílio, no Daniel Filipe, nos nossos emigrantes, dos portugueses bem de aqui, que de aqui abalaram e que de aqui se perderam. Não todos, não todos. Perco-me. A pensar na democracia, no poder do povo. Na luta.
Bretcht tem uma capacidade única de juntar lucidez (dura, por vezes brutal) e ironia (fina, delicadíssima), de nos dar a conhecer a nós próprios.
Apenas um bocadinho da conversa entre estes dois homens, tão diferentes e tão iguais, entre si e a cada um de nós, dois homens que se ncontram para beber cerveja e conversar sobre a pátria, sobre a vida. Sobre... tudo.
Aí vai:

(...)

Ziffel
(…) Eles não tinham compreendido o sentido da palavra democracia. Eu quero dizê-la no seu sentido literal: poder do povo.
Kalle
A palavra “povo” é um termo muito particular, isso nunca o chocou? Não tem o mesmo sentido dentro e fora. De fora, em relação aos outros povos, os grandes industriais, os fidalgotes, os altos funcionários, os generais, os bispos, etc., fazem naturalmente parte do povo alemão e não de um outro. Mas no interior, lá onde está o poder, você ouve sempre esses senhores falar do povo dizendo: “a turba”, “a gentalha” ou “a gentinha”, etc.; eles não fazem parte do povo.
O povo bem devia falar a mesma linguagem e dizer que esses senhores não fazem parte do povo.
Então a expressão “poder do povo” teria todo o sentido, completamente racional, reconheça-o.
Ziffel
Mas isso não seria um poder democrático mas uma ditadura do povo…
Kalle
Exactamente: seria a ditadura de 999 sobre o milésimo.
Ziffel
Isso seria o bom e o bonito se não significasse o comunismo. Você tem de admitir que o comunismo reduz a nada a liberdade do indivíduo.
Kalle
Você sente-se livre?
Ziffel
Não particularmente, se me põe a questão assim. Mas porque deveria trocar a falta de liberdade em regime capitalista pela falta de liberdade em regime comunista? Parece que você aceita, de qualquer maneira, que há falta de liberdade em regime comunista.
Kalle
Sem qualquer dificuldade. Não vou estar com charlatanices. Ninguém é totalmente livre quando detém o poder, muito menos o povo. Também não o são os capitalistas, que é que pensa? Não são livres, por exemplo, para deixar um comunista instalar-se como Presidente da República. Ou para fabricar a roupa que é necessária, quanto muito fabricam a que possam vender. Por outro lado, em regime comunista, não é permitido deixar-se explorar: ora aqui está uma liberdade suprimida.
Ziffel
Deixe-me dizer uma coisa: o povo não toma o poder a não ser em caso de necessidade extrema. O que resulta do homem só pensar em caso de extrema necessidade. Quando a água lhe chega ao rés do pescoço. As gentes têm medo do caos.
Kalle
Não é medo do caos... eles acabarão por se encontrar em caves, nos baixos de casas bombardeadas, tendo, nas suas costas, SS de revólver em punho.
Ziffel
Não terão nada na barriga, não poderão sepultar as suas crianças, mas a ordem reinará e quase não terão necessidade de pensar.

Ziffel empertigou-se. A sua atenção que, durante as divagações políticas de Kalle, tinha esmorecido, reanimou-se.

Ziffel
Não queria que ficasse com a impressão que critico essa gente. Pelo contrário. Ser lúcido é difícil. Todo o homem razoável evita-os quanto pode. Em países como aqueles que conheço, onde uma tal dose de reflexão é indispensável, não é possível viver. Aquilo a que chamo viver...


Emborcou o seu copo com ar ansioso. Pouco depois, separaram-se, afastaram-se cada um para seu lado.


(Ah!, como eu gostaria de "pôr isto em cena",

encenar e - sei lá... - fazer de Ziffel ou de Kalle,

dar corpo a estes personagens!)