sexta-feira, julho 27, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 44

"...Alonso Quixano acabou por perder o sizo.", di-lo Mestre Aquilino. Mas logo acrescenta que o "cronista" (Cide Hamete Benengeli) fugiu de dizer que essa perda de sizo foi, também, motivada pelos abalos "de um escarcéu interior" e mais acrescenta que "a verdade verdadeira é que não o revolucionaram menos os diabos do livre exame que os macaquinhos da Cavalaria Andante". O que já vai adiantado da página 205:
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Um belo dia, com a alba, abalou pela porta do curral, tendo reforçado o arnês com uma viseira de papelão, que julgou apta a receber qualquer golpe de revés, e com uma lança, cujo pé pediu à pernada de um azinho.
Caminhando à aventura pela terra inçada de nequícia, a febre do apostolado alucinou-o a ponto de lhe alterar na retina a propriedade e a forma das coisas. Salvou o menino flagelado das mãos de um bruto, mas não fez reparo que, ele a despegar, o mesmo bruto rompesse muito a seu cómodo a arrancar a pele ao inocente. Ilibou duas rameiras da vileza com a candura lustral da sua alma, e elas nas costas desataram às gargalhadas. Com a rópia toda, aqueles gigantes a espadelar o azul a grandes pernadas aéreas, que princesa iriam roubar ou que alto malefício tinham na tineira... ? - Esperai lá que já vos arranjo... - disse consigo e arremeteu.
- Olhe que não são gigantes, são moinhos de vento!
- Escusas de gritar, Sancho! Bem dou conta que parecem moínhos. Mas só eu sei o que são. São gigantes. Os meus pesadelos ensinaram-me a decifrar-lhes a expressão fantasmática. Deixa-me com eles!
E D. Quixote, persistindo na transfiguração das coisas pelo mal, não se cansou de apanhar lambada, partir os queixos, dar tombos, desiluso de aqueles que tinham por missão administrar justiça.
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Duas coisas me parecem interessantes, por isso de reter: 1º) que o diálogo entre D. Quixote e Sancho sobre os moinhos não seja de Cervantes, nem da versão de Aquilino do D. Quixote de Cervantes, mas de Aquilino em No cavalo de pau com Sancho Pança; 2º) que aqui comece Mestre Aquilino a atacar-se à justiça... andariam lobos a uivar por muito perto!

segunda-feira, julho 23, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 43

Até pode parecer que Mestre Aquilino faz o cavalo de pau andar às arrecuas. É que, depois de tanto caminho com Cervantes e com Quixote, no capítulo IX, a aproximar-se da página 200, vem contar-nos das "controvérsias a quatro" que antecederam e acompanharam as aventuras do engenhoso fidalgo quando Alonso Quixano era ou a ele voltava para recuperar de tanta tareia que D. Quixote levava. Conversas com o bacharel (Sansão Carrasco), o barbeiro (Mestre Nicolau) e o cura (Pero Pérez). Não será assim. Aquelas controvérsias - que sobretudo eram entre o cura e o bacharel, que o futuro D. Quixote, "menos lido em teologia do que em novelística", coçava o toutiço que muitas voltas dava, e o barbeiro quase só ouvia - estariam bem em qualquer lugar (do livro) e em qualquer tempo (da história).
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A Alonso Quixano preocupava-o sobretudo o problema do mal (...) Simão Carrasco, um dia, à puridade, com brusquidão formulou o terrível raciocínio: bem e mal em si não existem. Bem e mal são os termos em que se processa a luta pela vida. (...) Ter mesa farta, fêmea ou fêmeas para o gozo, a habitação que convém, vestir-se condicentemente com as estações, ser respeitado e temido, eis grosso modo os requisitos que na vida da espécie e, gradativamente, na do indivíduo, determinam os actos do bem e do mal. Ora no dia em que o homem encontre a satisfação das necessidades fundamentais, sem recorrer à violência, ao suborno, ao esbulho mercê de qualquer espécie de predomínio, está esconjurada a peste do mal humano. O homem não será anjo, mas poderá chamar irmão ao seu semelhante.
- E o meu senhor que faz dos templos? - observou sem acrimónia, mas com ar dissaborido, o licenciado Pero Pérez, que ainda ouvira o resto da proposição.
- Resta sempre na vida muito de impenetrável que fornecerá ao homem um pretexto plausível para continuar a tremer maleitas metafísicas - respondeu Sansão Carrasco, com humor.
Para Alonso Quixano, admitindo que o homem, segundo a lição do Resgate, tivesse recuperado o gozo do livre arbítrio, desligado por conseguinte da condenação primeira, certas pessoas eram mais responsáveis do que nunca pelo mal que continuava a lavrar à superfície da terra. Sobretudo os poderosos, os fortes, esses que faziam a lei e articulavam a justiça, e os seus executores, que de coração venal ou leviano cometiam os maiores atropelos contra a humanidade.
Por isso mesmo Alonso Quixano, o Bom, se sentia impelido para a missão augusta que os livros de Cavalaria inculcavam.
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Mas que estou eu a fazer? Isto não é para transcrever tudo. É para abrir apetites para leitura. Páro já. E vou à vida. A outras vidas. Tão torto está o mundo, e eu aqui deleitando-me à desmedida com a escrita sobre quem ensandeceu por tanto o ter querido endireitar. Até breve.

sábado, julho 21, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 42

Ora vamos lá à página 194, procurando não a esgotar...
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Cervantes, de resto, nem sempre esconde o juízo reservado que lhe merecem as mulheres. Deliberadamente é raro que o pronuncie, a não ser a meia voz: E como a mulher tem engenho pronto para tanto amassar ouro como rosalgar... Quando Leandra se deixa raptar pelo aventureiro, que a despoja de quanto leva sobre o corpo e vem dizer: enganou-me; era um ladrão refinado; mas não quis nada com a minha honra - não lhe importa muito que acreditem nela, protótipo como é destas criaturas que se deixam guiar mais pelo instinto de que pelo código moral ou religioso, naturezas portanto com a queda própria da vida que reclama franca alforria. E são elucidativas as seguintes palavras: ...pero los que conocían su discrécion y mucho entendimiento no atribuyeron a ignorancia su pecado, sino a su desenvoltura y a la natural inclinación de las mujeres, que por la mayor parte suele ser desatinada y mal compuesta. E nisto está a sua justificação. As leis da natureza não falseiam elas.
Maritornes é liberal do corpo com toda a gente e esta liberalidade tem o seu quê de cristão e caritativo que nos leva - e antes de mais ninguém o Criador - a perdoar-lhe o que tem de boçal e repulsivo. É estarola, mas boa. Não matou a sede a Sancho, melhor que a Samaritana, pois lhe deu vinho? O que apetece é homem. Nasceu um pouco para isso. A filha do estalajadeiro vai por igual vereda.
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E - repito-me - por ai fora... Mas há que parar, para todos descansarmos um pouco e isto não ser uma cópia mas uma escolha. Mesmo assim, quase ao fim da página 194 cheguei.

No cavalo de pau com Sancho Pança - 41

E agora? Agora, as mulheres. Na página 193, mas já vinda da página anterior, lá está matéria abundante sobre o tema.
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É um tipo curioso, se bem que bastante unilateral, este da mulher cervantesca. Todas primam por bonitas, melindrosas, extremas no sentir, menos felinas que frágeis, brandas no malefício e melodramáticas na constância. Em geral, oscilam ao vento e voltam ao seu aprumo como as corutas e últimas andadas de ramos de araucárias. É, mercê desta fraqueza inata, que Cervantes lhes atribui dons particulares de duplicidade, como um meio de defesa, condão natural, semelhante ao veneno na glande secretória da cobra.
(...) Pois a mulher interessada, mais particularmente a mulher espanhola, ou, como D. Quixote, visto na simbiose com Sancho, pressente graças porventura a uma clarividente subconsciência psíquica ou esperta intuição, a mesma Espanha, absoluta nos rasgos, oscilando entre todos os contrastes, bizarra e mesquinha, heróica e futre, original como não há segunda no mundo, mas perigosa, tão perigosa que são para pôr de quarentena tanto os seus afagos como as negaças.
As mulheres de Cervantes são pois cortadas segundo certo molde, sem que ele pretenda com isso dignificá-las ou diminuí-las. O retrato não deixa de ter os seus encantos, mas nunca fiar; quando menos se espera, vem a pincelada forte à Velásquez. Aquela Doroteia, sorte de Briseida, subitamente resvala na chochice. Torna-se mexriqueira, senhora comadre e bas-bleu. Mas, repetimos, psicologicamente a figura está tão certa em seus justos valores como qualquer das infantas no quadro das Meninas.
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E por aí fora. E tanto mais que toda a página se foi (apesar de um pequeno mas difícil salto de meia dúzia de linha), e já tanto está a espreitar na página seguinte que não resisto a por ela entrar... mas em outro "post".

No cavalo de pau com Sancho Pança - 40

Retomado o folego (para a inveterada vontade de endireitar o mundo... até nestas tarefas de tão grande gozo pessoal), logo logo na página 185:
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Assim Pança, com o burro e a marranica atávica de escravo, o seu misto de astúcia e de simplicidade, e todas as taras e méritos do homem natural. Posto seja de barro hispânico por índole, é tão cósmico como o amo. Não mais que a truculência com que se move a sua animalidade, segundo por ordem de relevo no teatro cervantesco, revela o poder de vida que lhe foi insuflado. Chama-se a isso conhecimento do homem e imaginação. Quem diz imaginação diz originalidade. Dela se prevalece Cervantes com legítima arrogância... ...soy el primero que he novelado en lengua castellana; que las muchas novelas, que en ella andan impresas, todas son traducidas de lenguas estranjeras; y éstas son mías proprias, no imitadas, ni hurtadas. Mi ingenio las engendró y las parió mi pluma...
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Em meia dúzia de linhas, tantos exactos perfis! De Pança, de seu amo, de Cervantes. De Espanha! Abençoado parto... E também o de Mestre Aquilino, parteiro e parturiente.

No cavalo de pau com Sancho Pança - 39

Aqui vou. Cavalicando. Contente por estar indo. Procurando o passo certo. Tanto caminho já feito e tanto caminho ainda falta. Vou na página 184 e não quero (porque não posso) transcrever todas as mais de 330 deste livro de maravilha(s).
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D. Quixote, não obstante as jaças de que está mareado, jaças observáveis num belo mármore se o examinarmos à lupa, é um livro eterno. Eterno como o herói, embora forjado com metal único, metal que só se encontra no subsolo psíquico de Espanha. E, por muito que o submetamos à pedra de toque gramatical, léxica, literária, fica pairando imune à análise mais severa e meticulosa. É que cavaleiro, não obstante os vínculos locais, está completo dentro de qualquer homem. Bastas vezes, sopitado como Durandarte sob os filtros de Merlim. Não raro, imóvel no fundo da jaula convencional, contemptor das leis morais e cívicas, e inveterado endireita do mundo torto.
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Por aqui paro. Não por longo ter sido o percurso, mas porque a frase "inveterado endireita do mundo" me obriga a parar. E a apear e a ficar uns momentos a reflectir sobre o mundo torto e a vontade (inveterada) de o endireitar.

sexta-feira, julho 20, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 38

Breve virei para... Assim escrevi, já lá vai um mês. E um mês passou sem ter dado por isso. Sempre com este "projecto" na cabeça. E adiado. Mas não pode ser! Das coisas que me estão a dar prazer esta é uma das que mais prazer me dá e não arranjo disponibilidade para ela. Isto tem de mudar! Parece que ando nas núvens, meteórico... Vamos lá, cavalinho de pau, à tal página 181 que vira para a 182. Até porque parece apropósito...
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E que D. Quixote passe nas nuvens, meteórico, a sua natureza não deixa de ser amassada bem humanamente segundo a receita de Adão, greda terrenal e cuspo divino. Assim, ver-se-á assoberbado, tanto quanto é consentâneo num homem lunático, por um dos problemas que mais preocupam os homens: o do dinheiro. Diz-se comummente que tal problema foi Balzac que o trouxe à plana da exegese romanesca. Pois anterior a ele, fê-lo com incisivo relevo Cervantes. Era de resto um dos tópicos do realismo picaresco. Sancho dana-se a contar maravedi por maravedi o dinheiro da escarcela. Como não ajustaram a soldada, só de pensar nisso lhe vêm dores de cabeça. Mas deixa, quando for governador, será mesmo negreiro como muito bom vizo-rei das Índias no intuito de amealhar os seus bilhestres para a velhice! D. Quixote, fidalgo pobre, esse, terá de vender duas ou três courelas para prover às necessidades de suas andanças. Previne-o o pretendido castelão que o armou cavaleiro:
- Traga baguinho!
Este circunstancial, que na novelística era tema desdenhado, torna-se no Engenhoso Fidalgo premente apuro e objecto de indeclinável atenção. O próprio cavaleiro se chora de não ser rico bastante para recompensar Sancho como merece. As considerações que na maré oportuna borda sobre a pobreza com tanto amargor, carregadas de tons escuros, pejorativos, traduzem bem a situação económica do novelista: Miserable de aquel que tiene la honra espantadiza y piensa que desde una leguas se le descubre el remiendo del zapato, el trasudor del sombrero, el hilaza del herreruele, y la hambre del estomago.
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Pois muito breve aqui voltarei. Prometo-me!, porque só comigo tenho encargo.

segunda-feira, julho 09, 2007

Boas leituras!...

O psicanalista, professor, Osvaldo Campos de seu nome, tomou para si os males dos pacientes (e dos impacientes) e, por eles, os males do mundo.
Sentiu que agir era preciso. E veio logo a pergunta como agir?
A acção é a primeira regra. Depois, há a do tempo e a do modo, e surge logo a regra do perigo. Entretanto, insinuou-se a regra do dolo formando as cinco regras. Mas foi-se impondo uma última regra, que “eles” queriam definitiva, a regra do silêncio. Da sombra. Por isso, combateremos a sombra.
No entanto, o leitor lembra que há mais regras. Porque é preciso ir mais fundo na acção para que, no tempo e no modo, se vença o dolo quando se afronta o perigo para se quebrar(em) o(s) silêncio(s).
Duas outras regras são indispensáveis: a histórica, isto é, a da luta de classes (desde que e enquanto); e a colectiva, a de tomar partido, a que Maria London grita para fazer coro com os passos batendo no chão do cemitério: “Deixem-me abraçá-los, milhões!”.
Assim é preciso. Para que não fique tudo como o agir “duma bondade defeituosa, uma bondade de parvo, uma justiça de doido”. De um homem só, psicanalista, professor. Só. Apenas com a companhia da ficção literária combatendo a sombra.

Quanto pesa uma alma?
Procurando outras perguntas, Combateremos a Sombra.

S.R.