sábado, março 31, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 29

Arrependimento? Vamos já já ver o que pensa Mestre Aquilino do arrependimento no sentir castelhano:

O arrependimento, já o dissemos, não faz parte do emocional espanhol. Madalenas ali não se sabe o que sejam. Um castelhano nunca lamenta ter sido vingativo, fero na desafronta, desmedido na chacina, mau na maldade, excessivo no bem. Lamentará apenas que o não tenha sido em grau superno, o mesmo é que esquilianamente. Arrepende-se, sim, se procedeu com torpeza, quer dizer, sem arte no que a palavra encerra de recalcamento das forças activas ou estáticas do carácter. Esta frase do D. Quixote equivale a uma definição: los más quedaron tristes y melancólicos de ver que no se habían hecho pedazos los tan esperados combatientes, bien así como los muchachos quedan tristes cuando no sale el ahorcado que esperan, porque le ha perdonado o la parte o la justicia.
Cervantes, em despeito do ressumbramento mefítico que é lícito supor lhe contagiasse os sectores afins da piedade, vibra de simpatia por todos os infelizes e irregulares da terra. Posto seja condão dos príncipes do entendimento, com ele é qualidade prima, como se esta singularidade fosse uma espécie de antibiótico contra a relice e apatia ovelhum do género humano.
Como muitas vezes nos tem acontecido, apesar da publicação do ensaio ser de 1960, as considerações de Mestre Aquilino sobre o carácter espanhol (ou castelhano), se muito importantes até para a identificação do português na Ibéria, parecem-nos muito perto, ou muito marcadas, pelo que foi a guerra civil em Espanha.

No cavalo de pau com Sancho Pança - 28

Vamos lá aproveitar estar na estrada para fazer mais um pedaço de caminho. Que, como dizia um outro (Machado), se faz al camiñar. E há ainda tanto caminho por fazer! Agora, será um saltinho até à página 168, lamentando sempre o que ficou pelo meio sem ser aqui trazido. Mas isto não é uma transcrição do ensaio de Aquilino em folhetins...
(...) hoje ainda é admissível que, sob cartaz de certame, uma caterva de ratões, bem comidos e bebidos, apeiem dos automóveis, e, de luvas, charuto na boca, com as suas hammerless de luxo, sacadas de estojos de camurça, se ponham a fuzilar pobres pombos prisioneiros, quando, logrados pela esperança de readquirir o que há de mais precioso do mundo a todo o ser vivo, remontam no céu, imaginando-se a são e salvo. É verdade, mas não se deitam os escravos às moreias para as engordarem e tornarem, com a carne cevada a trigo e vinho, mais saborosas aos epicuristas.
Tal seria o teor da época que reflecte aqui e além o D. Quixote. Mas a novela, além de caricatura dos livros de Cavalaria, querem os cervantistas que seja um libelo contra as prepotências, um idearium apologético e uma crítica de costumes. E esta palavra de Cervantes, que gostaríamos fosse um estigma, representa uma pura contemporização: No quedaron arrependidos los duques de la burla hecha a Sancho Pança del gobierno que le dieron.
Arrependimento? A ver vamos. Logo a seguir...

sexta-feira, março 30, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 27

Isto é que tem sido repousar, meu cavalicoque de pau! Também não sabes andar de patins...
Mas voltemos à nossa viagem e a mais um passeiozito.
Tínhamos ficado numa pergunta, a que, na mesma página 163, Mestre Aquilino dá resposta:
Antes de se expatriar para Roma, (Cervantes) já cultivava as musas. Por sinal que balbucios poéticos, pouco auspiciosos. No cativeiro escrevera poesia ditirâmbica, mormente versos ao divino, se não se trata dum endosso piedoso dos amigos para antídoto à requisitória de Juan Blanco de Paz, espião do Santo Ofício. Desde logo, a pena de escritor não lhe era pois novidade. Compôs El trato de Argel. O êxito relativo animou-o a carpinteirar outras peças. (...) Na sua estadia em Lisboa, Cervantes tivera o palpite de que o temperamento português, taciturno se não saudoso, se comprazia no bucolismo, como uma oxigenação bronquial. O amor era ali uma espécie de voto subtil, regulado por princípios trovadorescos, que poèticamente se exprimia e deleitava na ode e na écloga.
(...) Comédias, novelas de costumes, tudo isso levou pouco além das raias da mediocridade, sem desprimor.
E não resisto a lembrar que, na Associação Recreativa e Cultural da Atouguia (ARCA), em tempos propus e encenei uma dessas comédias de Miguel Cervantes, O Velho Ciumento. Não terá ficado para o meu currículum mas ficou nas minhas boas memórias...

domingo, março 11, 2007

António Gedeão contado/cantado por Manuel Freire

Foi uma tarde Som da Tinta.
Desta vez, congratulando-nos com a "casa cheia".
E o Manel, a contar e a cantar Gedeão (e o professor Rómulo de Caravalho), foi um excelente animador da tarde.




















Das que valem a pena viver.

No cavalo de pau com Sancho Pança - 26

Também acontece que quando as núvens estão tão baixas e carregadas que pesam na cabeça, apetece dar uma volta em cavalo de pau. Depois de, na pág. 162, Mestre Aquilini contar do Juiz de Barrelas, e lembrar-me a Rainha Zinga (o que ficará para outra altura), nessa mesma página e na seguinte há pedaços que merecem parança:
O que não sofre dúvidas é que metade dos dias passou-os Cervantes a resolver problemas que para tantos imbecis estão resolvidos de nascença. Daí a sua inconformidade, menos ostensiva que visceral, contra a sociedade. Tão em contra do seu temperamento, a sua constante condição foi servir. Acedia a servir para logo se furtar à canga. Ele nos esclarece que aceitou apajear o cardeal Acquaviva, se é que o apajeou, na mira de se forjar um paládio, ainda que temporário, ou enquanto não assentasse pé em Roma. Isto obtido, ou apercebendo-se da sujeição, ala! Serviu nos terços, idólatra, como bom espanhol da era heróica, do príncipe D. João de Áustria, e breve despia o uniforme, coacto não apenas pelo estropiamento como, talvez, pelo tédio que o tomara. As letras foram para ele um refúgio ou representam na sua índole uma incoercível tendência?
Por aqui, pela pergunta, me fico. Logo vem a resposta... e Lisboa. Até lá!

sexta-feira, março 09, 2007

As palavras exactas

Hoje, sei lá porquê, ou até sei..., apeteceu-me chamar biltre a um fulano que eu cá sei. E até sei porquê embora quisesse fazer de conta que não sei.
E fiquei nessa de chamo-não chamo... talvez chame... se ele fizer outra igual ou parecida... e se ele estiver por perto.
Por aí me fiquei a chamar biltre a um fulano sem biltre lhe ter chamado. E a palavra comigo ficou, como uma etiqueta a colar quando oportuno.
Biltre... Pois. A palavra exacta.
Era para ir ao dicionário ver o exacto significado da palavra exacta. Mas, antes, abri, ao acaso, um livro do Gedeão e logo me aparece a página com o

Poema da palavra exacta

Eu dou-te uma palavra, e tu jogarás nela
e nela apostarás com determinação.

Seja a palavra "biltre".

Talvez penses num cesto,
açafate de ráfia, prenhe de flores e frutos.

Talvez numa almofada num regaço
onde as mãos ágeis manobrando as linhas
as complicadas teias vão tecendo.

Talvez num insecto de élitros metálicos
emergindo da terra empapada de chuva.

Talvez num jogo lúdico, numa esfera de vidro,
pequena, contra outra arremessada.

Talvez...

Mas não.
Biltre é um homem vil, infame, ordinário.
São assim as palavras.

António Gedeão, no espaço Som da Tinta, amanhã, às 16 horas, contado/cantado por Manuel Freire. Com as palavras exactas.

segunda-feira, março 05, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 25

Tendo nós chegado ao ponto em Cervantes cria D. Quixote muito à sua própria imagem, quase como um seu retrato ficcionado, E encontramos Mestre Aquilino a, por vezes, mostrar alguma irritação pelo que chama os "devotos de Cervantes". Como se, por se gostar do que alguém escreve, se tenha de vangloriar o autor do que foi escrito, não como escritor mas como homem. Temos, agora e em Portugal, Saramago e Lobo Antunes que poderriam servir de exemplo para a necessidade de separar os homens dos escritores, com critérios de avaliação que nada têm a ver uns com os outros. Mas vamos lá à página 161:
Em geral os devotos de Cervantes, no intuito de exalçar o ídolo, procuram riscar da uma vida e carreira tudo aquilo que traga a marca do trivialmente terrestre, como sejam amores de ocasião e as necessidades económicas que o compeliram a curvatura de espinha lamentáveis e ainda o que se chama hoje indelicadezas em matéria de dinheiros públicos. Ora a vida é inimiga do heróico ao contrário do pensamento divinizador. Cervantes poderá não encarnar o homem de rígido carácter que se comprazem em ver nele os Catões do lado de lá da fronteira; nem um católico fervente como gostariam de apresentá-lo curas e ultramontanos; nem um tradicionalista ferrenho ao paladar do requetés. Mas ninguém nega que dispôs de admirável fantasia e D. Quixote é um dos luzeiros acesos na marcha titubeante da humanidade através da sua longa, ínvia e tantas vezes tenebrosa caminhada. Poderá não inculcar-se como modelo acabado de cidadão, nem ele concorreu a tal categoria, sempre ficará, em despeito dos seus altos e baixos de humano, um príncipe do pensamento e da moral literária. Mas este afã com que acepilham a pessoa, a alindam, a desbastam do terrenal, como que obedecendo a um mandato subconsciente, vem dar razão a quem vê no D. Quixote o símbolo da Espanha, sequiosa de absoluto e nada compreendendo para fora destas coordenadas.
Cervantes, homem pobre, prezando a vida no que tem de materialmente fruidor, nunca a logrou a seu gosto.

António Gedeão

Homem

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis.
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

No dia 10 de Março, pelas 16 horas, no espaço Som da Tinta, António Gedeão por Manuel Freire.

sexta-feira, março 02, 2007

Manuel Freire e a "Pedra Filosofal" de António Gedeão - 10 de Março no espaço Som da Tinta

Há quase 40 anos foi uma pedrada no charco!
Vamos ouvir e falar disso, e de outras "coisas" do António Gedeão, com o Manuel Freire, no dia 10 de Março, a partir das 16 horas.

quinta-feira, março 01, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 24

Este percurso vai ser longo. Segue ao que Aquilino vinha contando a transposição de Miguel Cervantes para D. Quixote, como a vida de um deu vida ao outro. Vamos a isto que as linhas são muitas, passando da página 159 para a 160:

Cervantes era coerente consigo mesmo e com o que escrevia. Que figados poderiam ser os seus depois daqueles desgraçados anos ao serviço d'El-rei, com o odioso lápis e a caderneta de perceptor em punho, invectivado e apupado pelos habitantes, apedrejado, batido, expulso?! Depois, chamado a responder pela porção de géneros prelevados que não deixariam de maquiar moleiros, almocreves, forneiros e coadjutores famélicos?! Que havia de ter em mente senão alucinantes moinhos de vento, absurdos odres de vinho e de azeite, curas nédios montados em horsas do Apocalipse, fidalguinhos marionetes e fidalgarrões de barba branca fluvial, com a vasta choldra de quadrilheiros e pícaros à roda, capazes todos eles, filipinos como eram até à medula, de jogar a túnica do Senhor dos Passos quanto mais de roubar a Manutenção?! Cervantes, em rixa com os moleiros, deu, transposto para o burlesco, o D. Quixote que arremeteu contra moinhos de vento, transfigurados em titãs. Excomungado pelos cabidos e alto clero, nada mais compreensível que o Engenhoso Fidalgo jogasse a sua lança contra os gordos frades de S. Bento. A liteira, guardada pelo biscainho, com a dama que vai ao encontro do seu senhor, alto burocrata nas Índias, - é o dégonflement da sua eterna obsessão de mercê, no Novo Mundo, como o cura de Alcobendas representa o desfrute de seu cunhado seminarista, que lhe havia de palmar a legítima da mulher, ou de seu tio por afinidade Juan Salazar de Palácios, um sacerdote chato e honrado, figurações essas da sua trovoada de sonhos nocturnais. E quem me diz se não foi que mantearam se não em Ecija, em La Rumbla, se não em Castro del Rio, em Carmona, uma vez que é tão fora de razão ver aqueles birbantões, cardadores de Segóvia, vendedores de agulhas e alfinetes de Córdova, belfurinheiros da feira de Sevilha, fazerem-no a Sancho Pança, pobre diabo como eles, tomando dores pelo Canhoto estalajadeiro? A Cova de Montesinhos não é a Cova de Cabra, cujo boqueirão ficaria sempre a lobreguejar na imaginação pávida do menino, quando a família, acossada pelo vendaval da vida, vinha acolher-se à sombra do parente remediado? E Dulcineia não terá pedido emprestada a Catalina aquela sua cerebral e inacessível altanaria, distância idealizada e rigidez de ressentida em que petrificou para com o aventureiro? Não foi com ela que aprendeu a volátil significação do amor?