quinta-feira, março 01, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 24

Este percurso vai ser longo. Segue ao que Aquilino vinha contando a transposição de Miguel Cervantes para D. Quixote, como a vida de um deu vida ao outro. Vamos a isto que as linhas são muitas, passando da página 159 para a 160:

Cervantes era coerente consigo mesmo e com o que escrevia. Que figados poderiam ser os seus depois daqueles desgraçados anos ao serviço d'El-rei, com o odioso lápis e a caderneta de perceptor em punho, invectivado e apupado pelos habitantes, apedrejado, batido, expulso?! Depois, chamado a responder pela porção de géneros prelevados que não deixariam de maquiar moleiros, almocreves, forneiros e coadjutores famélicos?! Que havia de ter em mente senão alucinantes moinhos de vento, absurdos odres de vinho e de azeite, curas nédios montados em horsas do Apocalipse, fidalguinhos marionetes e fidalgarrões de barba branca fluvial, com a vasta choldra de quadrilheiros e pícaros à roda, capazes todos eles, filipinos como eram até à medula, de jogar a túnica do Senhor dos Passos quanto mais de roubar a Manutenção?! Cervantes, em rixa com os moleiros, deu, transposto para o burlesco, o D. Quixote que arremeteu contra moinhos de vento, transfigurados em titãs. Excomungado pelos cabidos e alto clero, nada mais compreensível que o Engenhoso Fidalgo jogasse a sua lança contra os gordos frades de S. Bento. A liteira, guardada pelo biscainho, com a dama que vai ao encontro do seu senhor, alto burocrata nas Índias, - é o dégonflement da sua eterna obsessão de mercê, no Novo Mundo, como o cura de Alcobendas representa o desfrute de seu cunhado seminarista, que lhe havia de palmar a legítima da mulher, ou de seu tio por afinidade Juan Salazar de Palácios, um sacerdote chato e honrado, figurações essas da sua trovoada de sonhos nocturnais. E quem me diz se não foi que mantearam se não em Ecija, em La Rumbla, se não em Castro del Rio, em Carmona, uma vez que é tão fora de razão ver aqueles birbantões, cardadores de Segóvia, vendedores de agulhas e alfinetes de Córdova, belfurinheiros da feira de Sevilha, fazerem-no a Sancho Pança, pobre diabo como eles, tomando dores pelo Canhoto estalajadeiro? A Cova de Montesinhos não é a Cova de Cabra, cujo boqueirão ficaria sempre a lobreguejar na imaginação pávida do menino, quando a família, acossada pelo vendaval da vida, vinha acolher-se à sombra do parente remediado? E Dulcineia não terá pedido emprestada a Catalina aquela sua cerebral e inacessível altanaria, distância idealizada e rigidez de ressentida em que petrificou para com o aventureiro? Não foi com ela que aprendeu a volátil significação do amor?

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