sexta-feira, janeiro 26, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 14

Em que trabalhos me meti! Vejo o número de excertos que aqui quero trazer... e assusto-me. Mais ainda quando (tres)leio e acho que devia, também, aproveitar mais este bocadinho... Um sarilho.
Hoje, retomo, numa espécie de encantamento, a página 105 e passo à 106, deixando a 107 para mais logo ou para amanhã, embora já agora aqui fiquem as duas primeiras linhas.
Como iamos transcrevendo...
"E porque não o fez? Filipe II era um homem cheio de dons, mas de defeitos improporcionalmente superiores. O grande óbice dos seus projectos foi querer abarcar e dilatar o mundo, que lhe legou Carlos V, com os restritos braços espanhóis. Sonhava com a monarquia católica universal, e sonhos destes, imperialistas, deram sempre com o sonhador em pantanas. (...) Afinal, foi o rei das grandes frustrações. Pretendeu avassalar a Inglaterra, e as duas ou três vezes que o tentou falhou mais ou menos estrondosamente. (...) procurou subjugar a Inglaterra pelas armas, e a Armada Invencível foi o grande desasatre, primeiro degrau da ruína galopante. Desde esse dia, a Espanha ficou com chaga aberta no flanco . Não houve porém logo sinal. O diagnóstio não fixa, tão-pouco, prazos. E compreende-se, as doenças das nações, sejam graves septicemias ou passageiras furuncoloses, duram o tempo, comparado com o organismo do indivíduo, proporcional à sua longevidade.
(...) Se a Espanha se não distrai com a Flandres e com a Itália e concentra a sua ofensiva sobre Portugal, bem certo que seria absorvido.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 13

Ainda nessa página (já 105...), Aquilino continua a discorrer sobre o tema, e com ele vai até ao fim do capítulo, retomando-o mais adiante e no final do livro.
E, já que me meti nestes trabalhos, não resisto a reproduzir alguns trechos, partindo-os por forma a manter a dimensão que julgo adequada a "post":
Posto isto, parecia que a integração efectiva, corpo e alma, se efectuasse entre Espanha e Portugal por simples impregnação como a levedura na masseira. Para mais,o ocupante saira da mesma cepa, falava uma língua irmã, era similar em costumes e religião, uma fronteira comum e bem vadeável corria de Norte a Sul. Além disso, levava-lhe vantagens em dinamismo, dispor de recursos militares superiores, ser cinco vezes mais populoso e com uma economia muito mais sólida. A absorção não se deu, porém. Mas com certeza ter-se-ia dado, se a Espanha pusesse em jogo os elementos de que virtualmente dispunha.
E porque não o fez? Filipe II era um homem cheio de dons, mas de defeitos improporcionalmente superiores ...
... voltarei breve, Logo que possa!

João Carlos Silva no espaço Som da Tinta

Embora o tempo tivesse sido muito escasso para divulgação e promoção da iniciativa, a oportunidade de ter, de novo, João Carlos Silva no nosso espaço resultou num muito agradável encontro, com apresentação do seu novo livro e com um convívio e uma conversa muito agradáveis em que o nosso convidado confirmou as suas excelentes capacidades de comunicador e de divulgar da cultura, ressaltando-se preocupação com a preservação e a valorização da língua portuguesa. Aliás, o próximo programa de televisão de João Carlos Silva chamar-se-á Sal na língua, título inspirado em Eugénio de Andrade, e percorrerá todos os países onde se fale (e cozinhe) em português.
Embora não tivesse estado uma "enchente", o nosso espaço esteve bem recheado de assistentes... e participantes na conversa.

... e, já agora, "façam o favor de ser felizes"! 'Tá bem?!

quarta-feira, janeiro 24, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 12

Não é largo o passo. Logo na página 104 e seguintes, Aquilino volta ao tema sempre presente, mas nem sempre explícito de Portugal e da Espanha (do láparo e da jibóia), tema que, nestes tempos de uniões europeias e de adesões coincidentes no tempo, tem actualidade maior:
Na conjunção de sessenta anos de Portugal com Espanha, o que mais admira não é o movimento libertador de 1640, que nós ampliámos até à epopeia e que em todas as cortes se chamou conjura e nem atingiu sequer o grau de motim. Com efeito, não se despendeu mais que um tiro, o que matou o secretário de Estado Miguel de Vasconcelos. O que admira é que a Espanha, durante sessenta anos de domínio, não houvesse digerido Portugal. Como se explica que o láparo resistisse ao estômago da jibóia? Reunia o povo português tais qualidades de auto-independência, havendo-de tornado um ser colectivo tão fortemente compleicionado, que a assimilação fosse impossível? Pelo contrário. Mercê, segundo é notório, das virtudes negativas que lhe vinham cultivando desde D. João III, perdera a virilidade e o carácter. A vis de uma nação é feita da sua consciente cidadania. Esta existe consoante o grau de liberdade e de bem-estar que usufrui. Ora em Portugal, com o andar dos tempos, deixara de haver cidadãos para só haver pedintes, escravos e áulicos. Nem uns, nem outros contam para a estruturação de uma pátria. No sentir de Oliveira Martins, a tragédia da sua aniquilação fora decorrendo em lágrimas e desesperos. Tudo isso é falso épos. A verdade é que o colóide perdera todas as condições de vibratilidade. Respondia com indiferença absoluta a males, misérias, extorsões e indignidades do Poder. O português contentava-se em rilhar, metido dentro da sua broa. Não houve sequer pânico. Foi perante um imenso nirvana que se encontraram os Filipes. Mal assomaram à fronteira com certo rompante, abriram-se-lhes as portas de par em par e caíram, tão fácil como em Jericó, os muros dos castelos.
Já volto...

sexta-feira, janeiro 19, 2007

"Façam favor de ser felizes!"

INFORMAÇÃO-CONVITE

Aproveitando a sua estadia em Portugal
e a sua disponibilidade
(gostámos muito de o ter em OURÉM,
mas parece que ele também gostou de cá ter estado…)

JOÃO CARLOS SILVA
vai estar na

no dia 24 de Janeiro, 4ª feira,
a partir das 18.30 horas,
para conversar e conviver,
e apresentar o livro-intimação


apareçam!

No cavalo de pau com Sancho Pança - 11


A vida de Cervantes foi muito atribulada. E dela nos vai dando conta Aquilino no seu ensaio.
Depois de Lisboa (e a ela, e a Portugal, se voltará), "no ano da Graça de 1582", Cervantes escreveu uma carta que mereceu a Aquilino estes comentários (na página 103):

A carta de Cervantes, pródiga em salamaleques e de redacção retorcida, endereçada já de Madrid para Lisboa, parece mais a de um demandante vulgar, corrido, mas sempre delicado, acalentando em si voltar com o cantil, pois que evita queimar as pontes, mas de letras mal estreadas nestas maranhas. Afinal, denuncia o estado de espírito e a situação do homem aux abois com aquele estilo tão fora das normas do cursivo burocrático. esse para o qual os escritores de raça têm visceral inaptidão. O enrodilhado da frase constitui ainda a prova iniludível de quanto o escritor se via contrafeito, sabe-se lá em que horas de desnudez absoluta. Quem em semelhantes auges escreve uma carta com altivez e rectitude mental? O mesmo acontece ao postulante que se apresenta à potestade, de corda ao pescoço. Entaramela-se-lhe a voz e as palavras que profere carecem de propriedade, se algum nexo encerram. O infeliz é canhestro. Odioso. Vendo-se ao espelho, seria o primeiro a reconhecer que merecia ser corrido a pontapés. Em geral despedem-no com requintes de cerimónia e compostura.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

No dia 27, às 15 horas, Ourém na Som da Tinta

INFORMAÇÃO-CONVITE

No dia 27 de Janeiro, pelas 15 horas,
mais uma apresentação de um livro...
mas de um livro especial:

um livro que tem Ourém lá dentro
(e muita gente de Ourém, conhecida e amiga)

Será um reencontro e conversa
de quem fotografou e legendou
com
quem foi fotografado e legendado

vai ser giro!

No cavalo de pau com Sancho Pança - 10

E os portugueses? Como reagiram os portugueses (se é que como portugueses reagiram...) à entrada de Filipe II em Lisboa e aos 60 anos de soberania filipina? Em vários momentos do seu ensaio Aquilino escreve sobre esse tempo e essa "convivência", quase sempre actualizando-os (para 1960 e, também, para hoje, quase 50 anos passados).
Logo na página 93, embora sempre contando-nos Miguel de Cervantes, lá está:


"O certo é que nem Filipe II nem os áulicos se importaram mais com ele. Na corte imperavam outros cuidados, embora entretecidos de regozijos e parabéns. Os portugueses da nobreza, um a um, em carreiro de formigas, apaparicados por Cristóvão de Moura, corruptor de primeira, iam-se chegando ao beija-mão. Chovia-lhes o maná e as codornizes do farto relambório. Para comprazer com eles, o rei taciturno despiu mesmo a sua roupa negra, assotainada, com gola severa de canudos, tal como trajam os cavaleiros do Espólio. Deitou camisa de holanda, gibão claro de veludo, e cavaqueava familiarmente, chalaceava até com os grandes de Portugal, récua macambúzia e crepuscular como ele, em estado normal, quando não representava. Não teve a coragem de mudar a capital para Lisboa, mas prestou a melhor atenção a um italiano que, através do Tejo, por Toledo, imaginou uma via rápida para Madrid. À força de fazer a boquinha doce a uns e outros, tornou-se corriqueira entre as colarejas esta frase de louvaminha: mal empregado rei para os castelhanos!"

quarta-feira, janeiro 17, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 9

A chegada de Filipe II a Lisboa, em 1580, e esses 80 anos de Portugal parte de Espanha, coincide com muito da vida de Cervantes. E Aquilino faz dessa coincidência motivo para páginas que muito fazem pensar. Por agora, fica uma transcrição da página 92... mas há tantas e tantas outras que mereciam ser transcritas (e algumas serão) sobre o tema da Ibéria, de Espanha e de Portugal, dos portugueses e dos espanhois:
"Miguel de Cervantes teve então lugar e tempo de se impregnar da cidade. Na novela póstuma Persiles y Sigismunda decantou-a como a primeira e maior do mundo, a mais amena, mais amável, mais digna, pelo sítio, pelo céu, pelos moradores, de ser habitada por um casal feliz. E porventura os dias lhe corressem propícios e alados, pois que suprema consolação, para um homem ou cão batido, é não os ver correr. Quando há cidades que se fica a amar para sempre é porque naturalmente a vida não teve as mãos ferradas no pescoço daquele que lá viveu. Quanto às povoações que se detestam, é porque à sua lembrança se reacende o revolvedoiro das fezes. Lisboa ficou para ele a terra marcada no calendário como uma pedra branca. Como Lisboa foram seus amores Sevilha, Toledo, Barcelona. Hermes tinha-lhas mostrado na encruzilhada dos caminhos, com a face a flectir para a direita.
"O que ele diz de enormidades simpáticas, de mentirosas virtudes, de falsos dons acerca de Lisboa, a pobre cidade pestiferada, com cadáveres de negros e escravos a apodrecer a céu aberto sob núvens de moscaria ondulante, andadores de almas e frades mendicantes de hábito roto inçando ruas e praças, cheiro de carne queimada nos autos-de-fé a impregnar a atmosfera, excede a melhor disposição de alma, disparada às fantasias. Soube ele em Lisboa o que isso era?"

terça-feira, janeiro 16, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 8

Antes de passar a uma das muitas partes deste ensaio de Aquilino em que a circunstância de Cervantes ter sido contemporâneo do período dos Filipes em Portugal é motivo de reflexões muito interessantes, até porque Cervantes faz muitas referências a Lisboa e a Portugal, não resisto a deixar esta breve passagem, n página 84, e ainda relacionada com o cativeiro em Argel:
"Nos tempos de hoje a homossexualidade deixou de ser um pecado nefando para se tornar o jardim viçoso em que se alteiam as mais esquisitas e redolentes espécies literárias. Veja-se o partido que tiraram dela Gide, Colette, Proust. De resto, não fizeram mais do que reatar a tradição clássica que vinha dos gregos, desde Sócrates, e dos romanos com Augusto e Petrónio."
E a primeira transcrição desta gravura... como aperitivo:

segunda-feira, janeiro 15, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 7

Pergunto-me como foi possível estar uma semana sem aqui trazer Aquilino, andando com ele na pasta e nos projectos... para quando tempo livre encontrasse.
Isto dos jogos de hóquei a meio e no fim da semana e todos os problemas que ser dirigente de um clube como o Juventude Ouriense traz, e mais uma reunião de dois dias do Comité Central, impediram-me de montar no cavalo de pau e de acompanhar Sancho Pança. Mas fez-me cá uma falta!... Decerto só a mim porque não descubro reacções a este trabalho que tanto prazer me está a dar. A ele volto, ainda com Cervantes no cativeiro, e muito longa seria a transcrição se o espaço não tivesse de ter limites apertados. Por isso me quedo (atormentado) por alguns curtos trechos das páginas 66 e 67.
"Quem não ignora o que é a psicologia dos desterrados avalia o que era naquele estarim o refervedouro das paizões, dos pareceres desencontrados, das inimizades, das intrigas e insídias, em suma, da desordem e confusão em toda a linha. (...) O desterrado, e quem diz desterrado com dobrada razão diz cativo, nunca está contente nem conforme com a ordem do mundo. (...) Exacerbam-se nele todas as inclinações da civilização, como seja brio, honra, timbre, justo orgulho e a vaidade, que é a primeira plumagem que mais se engrifa no pescoço do galo e, por metáfora, no coração do homem. (...) Quanto a costumes, quem caía em Argel deixava-se impregnar muito ou pouco. Vivia-se na devassidão ou, melhor, à rédea solta. Para os cativos, o facto mesmo de terem sido postos à margem da sociedade, como detritos da ressaca, impelia-os automaticamente, ou seja como um termo da instintiva revindicta, para o desfrute daquilo que a existência podia oferecer de mais próximo e recuperador. Por certo que criaturas do jaez daqueles alferes, aprisionados, daqueles homens de letras com as suas ambições quebradas, embora entre elas houvesse eclesiásticos, quando se achavam juntos, decerto se não punham a rezar o terço.
Juan Blanco de Paz devia ter-se tornado o fantasma dos cativos e, por sua vez, o bode expiatório no banho de El-rei. Prestaria também o flanco por estar sempre a meter o nariz na vida do próximo, parecendo intrigar quando o seu objectivo era destorcer as meadas dos sucessos menos ortodoxos que se fossem dando, inquirindo e tomando notas. (...) O Demónio do Meio-Dia tinha espiões em toda a parte, a seu serviço e de Deus. Podia deixar aquele lugar tão crucial sem esculca?! "
Tenho de parar. A custo o faço, até porque o "retrato" da inquisição ("o Demónio do Meio-Dia") e o "filme" dos seus procedimentos são traçados, por Aquilino de forma magistral, enquadrando-a no tempo em que foi - e tanto continua a ainda ser...

segunda-feira, janeiro 08, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 6

... e acrescento já já, esta pequena "pérola" que está na página 65:

"Contribuir para o resgate tornara-se, piamente, uma das modalidades religiosas ou arte de conquistar a bem-aventurança, como rezas e encomendas de octavários a el cura. No testamento das pessoas fortunadas, das fidalgas fins de raça e sem herdeiros, dos grandes pecadores contritos, com arcas atestadas de dobrões, da mesma maneira que hoje se deixam legados para os hospitais, as Misericórdias, as cantinas das escolas e até para os sinos das igrejas, figurava a redenção dos cativos.
Argel, Tetuão, Fez, tinham-se tornado com esta comercializada espiritualização o mealheiro das almas. Quem acalentava a cobiça de salvar-se contraía daquelas caridosas hipotecas."
Logo nas páginas seguintes de escrevem, sobre os cativeiros e os cativos, belíssimos (e profundos) trechos. Lá iremos, montados neste cavalo de pau.

No cavalo de pau com Sancho Pança - 5

Os momentos em que releio e transcrevo Aquilino (no blog da Som da Tinta) são momentos de deleite, de gozo. O pior é a “ressaca” de não ver esses momentos partilhados, de não saber lidos os “posts” e de não os ver comentados.
São reacções que terão a ver, talvez, com o que li, na página 49, em que Aquilino fala “do(s) vago(s) poeta(s) de água doce nas horas de ócio”.
Muito se escreve neste livro sobre Portugal e os portugueses. Na página 61, ainda no episódio do cativeiro de Cervantes, em Alger, pode ler-se:

“Vicente Espinel dizia que não havia ninguém mais doido que um português. Era essa uma forma de elogiá-los, pois que não é com bom senso que se forjam os heróis, nem dos sensatos e prudentes saem os grandes homens em qualquer coisa, mesmo com mulheres. Para Cervantes os portugueses, haja ainda em vista o que diz na Galateia, são os únicos que morrem de amor. Contando a história – escreve ele – la creyerán, por tener casi en costumbre el morir de amor los portugueses."

sábado, janeiro 06, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 4

Da estadia de Cervantes no norte de África, como militar e como cativo, não resisto a transcrever, de duas páginas (41 e 43), uns curtos trechos ilustrado por uma gravura entre as que tive a sorte de encontrar no meio do livro que procurava há 40 anos e encontrei em alfarrabista do Porto (No cavalo de pau com Sancho Pança, Aquilino Ribeiro - 1ª edição, 1960):

"(...)Da massa destes cativos, sem nome, sem medo e sem responsabilidades, saíam os renegados. O sofrimento tinha limites. Uma vez que abjurassem da lei em que haviam nascido e abraçassem o novo estado de coisas, acabava-se o cativeiro. Era disso que se temia o Pe. Graciano no Tratado de la redempción de captivos. Por toda a Berberia se verificava andar a grande maioria dos cristãos esquecida da lei de Deus e em risco de perder-se. Os moiros empenhavam-se particularmente em conduzi-los a renegar, casando-os com as filhas, às vezes ricas e bonitas. E acrescenta na mesma ordem de ideias o padre: Doze mil escudos, ouro, prometia certo moiro a um sacerdote cativo em Tunes se quisesse renegar e casar com a sua menina de 15 anos, a qual era extremamente bem-parecida. Com semelhantes tentações por um lado, sevícias por outro, os trânsfugas para o arraial de Mafona eram aos cardumes."

(...)

"A França amansou e civilizou aquela corda de terras agarenas que andavam fora de toda a lei, arrasando os antros abomináveis. E agora pesam aos argelinos e tunisinos os grilhões que outrora deitavam aos outros. A história vai-se desdobrando segundo um ciclo sem fim e mal é que paguem os homens dois dias de sol com cem anos de tempestade (...)"




sexta-feira, janeiro 05, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 3

Logo logo, na página 27, uma outra pincelada em que, de Aquilino, nos oferecem umas linhas do quadro onde retrata o ambiente em que Miguel Cervantes crescia:

"(...) Madrid adormecia ruminando infinitas hipóteses de perversidade, e a imaginação espanhola, por si fértil, esporeada pelo gume do mistério, tornava-se um muladar fumegante. Que admira que os homens corrompessem e na família não houvesse moral alguma embora com o Cristo pregado do frontal a vigiá-los, ou com a luz do azeite a bruxulear às suas chagas verdes no oratório?
O espanhol vivia exorbitado. E os grandes de Espanha, recios e graves, dir-se-iam todos à uma imbuídos duma pétrea sobranceria, posto que sobre o melancólico, género de altivez como a fachada da catedral de Plasência (...)"

No cavalo de pau com Sancho Pança - 2

Sobre as irmãs de Miguel Cervantes, estas breves e aquilinas pinceladas (páginas 24-25), a que muitas outras se poderiam juntar:

"(...) Presume-se que todas as manhãs, uma das casquivanas pusesse a mantilha:
- Me voy, madre...
- Onde te vas?
- Me voy.
E lá iam para voltar dedigressões de que ninguém lhes pedia contas, como mulheres livres e discretas, muito educadinhas e amáveis ao sentir dos vizinhos, sempre em regra com o cura e as variadas obrigações paroquiais. O termo discreto, que em Cervantes assume uma amplitude enciclopédica no sentido do bom entendimento das coisas e decoro pessoal, aqui tem exacta aplicação(...)"

quinta-feira, janeiro 04, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 1

Reler Aquilino, reler o No cavalo de pau com Sancho Pança, é, para mim, intraduzível. Sinto uma sensação de gozo, de saborear, talvez maiores por serem um gozo e um saboreamento adiados .
A acompanhar a tradução do D. Quixote, e antes, e depois, Aquilino documentou-se, estudou, comentou, escreveu sobre Cervantes, a sua vida, o D. Quixote (e o Sancho Pança) que criou.

Cada página quase convida a ser transcrita. Como estímulo à leitura (e não só de Aquilino), vou aproveitar textos sem a certeza de que serei capaz de travar, de não ser excessivo.
Começo pela página 17, em que, ao esboçar o retrato da família de Cervantes, Aquilino escreve:

"(...) O patriarca, Rodrigo Cervantes, era barbeiro-cirurgião, mal-avindo de clientes devido à surdez. O que lhe valia era ser pai de umas raparigas fanchonaças, que representam sempre o melhor chamariz de freguesia em qualquer ramo de negócio. Ao tempo, a arte médica consistia, mais que tudo, em sangrar, sarjar um leicenço com a mesma lanceta da flebotomia, levantar a espinhela caída. Encanar um braço ou perna partida, mediante uma chapada de pez e canas laminadas, era função particular dos algebristas, que mais correntemente chamavam endireitas. Ao tempo revinha ainda aos barbeiros fazer a barba, enfeitar e vestir aos defuntos de qualidade, e desta função piedosa auferiam os melhores réditos(...)"