sexta-feira, julho 30, 2010

"Ensaio" sobre tradução

A uma tal Maria Castro Dias

.

Sim. Vou atrever-me a escrever um "ensaio" (entre aspas) sobre tradução. Em meia dúzia de linhas, à medida de um blog. Por isso, não será um ensaio (sem aspas).

.

Sempre que leio um livro traduzido, perco algum tempo a pensar - e a avaliar - a tradução. Uma obra que alguém escreveu na sua língua, ou na língua que fez sua ao escrever o livro, é por mim lida numa outra língua, que é a minha, de leitor, pelo que há uma entreposta pessoa entre o autor que escreveu o que leio e eu que leio o que escrito foi.

Aliás, já algumas traduções fiz - de livros de economia -, já nalgumas traduções participei. E começo por uma destas. Ou já comecei, quando escolhi um nome (e não foi o nome), alguém, tradudora, para lhe dedicar este "ensaio".

Foi o caso de ter vivido intensamente a tradução de A História do senhor Sommer, de Patrick Süskind. Talvez sem na altura me aperceber tão bem como hoje sei que o foi. Aquela casa em que vivíamos foi, durante uns tempos, partilhada pelo autor, um alemão nascido na Baviera, mais da idade da tradutora que da minha, que se meteu na nossa vida-a-dois (e mais um).

Foi uma aprendizagem sobre designações de peças de bicicleta, sobre coisas ligadas a piano, foi um tempo de buscas para encontrar, em português, a correspondência mais ajustada para o que o tal Patrick escrevera em alemão. Foi muito giro. E, sem querer uma folhinha de louro que seja para a obra tão asseada que saiu, dela me orgulho.

E por ela me zango. Por ver, na busca de agora - para elaborar este "ensaio"... -, a tal Maria Castro Dias assim nomeada, e não como gostaria que estivesse, e por a ver poucotratada, e vá lá que não maltratada porque referida. Embora sem encontrar referências à 1ª edição, e só os ver a partir da 2ª edição, de 1993 (e vão 12), o que me impede de dizer com precisão em que anos andámos (é maneira de dizer...) às voltas com a tradução.

Poucotratada para não dizer maltratada... O que não é o caso de um outro tradutor de um livro que me marcou, pelo excelente texto que li em português, de um autor turco, traduzido do francês. Trata-se de Os românticos - a vida é bela, meu velho de Nazim Hikmet, traduzido por um tal José Saramago, 1ª edição de 1985, quando o tradutor "precisava" de fazer traduções (e ainda bem que fez esta, e outras), sendo o caso da promoção da obra, pela editora, não referir quem a traduziu.

Adiante...

Pois sobre isto de traduções haveria muito a escrever. E, feito o intróito, avançaria por dizer que há autores que só leio na língua original. Como os portugueses e brasileiros e um certo Daniel Pennac que não sei como leria em tradução para português. É que não vejo como (Chagrin d'école, por exemplo). Tal como, ao contrário, não vejo de que maneira certos autores de língua portuguesa poderiam - poderão!, porque são - ser traduzidos noutras línguas. Como Aquilino, como Mia Couto, como Luandino Vieira.

Já o caso que me trouxe a este "ensaio" é o de uma tradução que, na minha leitura, ultrapassa a grande qualidade de passar desapercebida, para me despertar, ou sobressaltar, para a sua qualidade intrínseca.

A tradutora de O complexo de Portnoy, Ana Luísa Faria, fez-me, mais de uma vez, parar na leitura. A apreciar as soluções de tradução, como na manutenção de palavras e expressões judaicas talqual (talvez a "solução" para traduzir Luandino), que o leitor se deve encarregar de traduzir, como o faria na leitura do original, ou a pensar "que bem adaptado à língua e cultura que é a de mim-leitor português".

Por exemplo (páginas 227-8):
.
.
.
.
«Porque é que eu não casei com a rapariga? Bom, para começar havia aquele seu calão queriducho de colégio interno. Insuportável. “Deitar fora” por vomitar, “piurço” por irritado, “de gritos” por divertido, “chanfrado” por louco. Ah, e “divinal” (…). E depois havia as alcunhas dos amigos; e havia os amigos propriamente ditos! Quincas, Pipas e Cucas, Nicos, Bolotas, Xixas, Pituns, Bonecos, Babás – quem a ouvisse pensaria, disse-lhe eu, que ela tinha andado em Vassar(*) com os sobrinhos do Pato Donald… Mas a verdade é que o meu calão também a fez sofrer. Da primeira vez que disse foda-se diante dela (…) estampou-se no rosto da Peregrina uma tal expressão de sofrimento, que seria caso para pensar que eu lhe gravara na carne as seis letras a ferro em brasa. Mas porquê, perguntou-me ela em tom de queixa, assim que ficámos sós, porque é que eu tinha sido tão “detestável”? Que prazer me dava ser tão “malcriado”? O que é que eu queria “provar”? “Foste chatérrimo, e sem necessidade nenhuma. Que coisa mais gratuita.” Chatérrimo, na linguagem das debutantes, é sinónimo de desagradável.»
___________________________
(*) Vassar College é uma das mais antigas e tradicionais instituições privadas, mista de ensino e de artes, nos Estados Unidos. Situa-se em Poughkeepsie, cem quilómetros ao norte de Nova Iorque. Fundado em 1861, foi a primeira universidade exclusivamente para mulheres nos Estados Unidos.

quinta-feira, julho 29, 2010

O complexo de Portnoy - 2

Duas transcrições de O complexo de Portnoy.
.
Numa primeira, em dois trechos interligados, Philip Roth ilustra como, na infância e adolescência de Alex (e na sua!), a condição de judeu o(s) marcou indelevelmente. Todo o livro, até em designações não traduzidas, é marcado pela situação dos judeus nos Estados Unidos e no mundo e, depois, em Israel.
A conversão religiosa por que ele pergunta àquela que estava a pensar que amava, e tanto que exultavam com a falha de um período menstrual deste partindo para projectos futuros, é sobre a conversão ao judaísmo, e as consequências da resposta são devastadoras para a relação, ao mesmo tempo que, em meia dúzia de linhas - em desabafo ao psicanalista - PR tanto diz sobre nós todos, judeus ou não, na perplexidade que acompanha a ruptura de uma relação:

1. - «(…) Eu disse-lhe: “E tu convertes-te, não é?”
Fiz a pergunta em tom irónico, ou pelo menos era essa minha intenção. Mas a Kay levou-a a sério. Não foi ao ponto de me dar uma resposta solene, mas respondeu a sério.
Kay Campbell, de Davenport, Iowa: "Porque é que eu havia de fazer semelhante coisa?"
(…)
Ainda assim, pelos vistos, eu nunca mais lhe perdoei: nas semanas que se seguiram ao falso alarme, comecei a achá-la enfadonhamente previsível nas conversas, e pouco mais ou menos tão desejável como um monte de banha na cama. E surpreendeu-me que ela reagisse tão mal quando finalmente tive de lhe dizer que já não gostava dela. Fui muito honesto, está a ver, como aconselha Bertrand Russell. “Não quero andar mais contigo, Kay. Não posso esconder aquilo que sinto, tenho muita pena.” Ela chorou desalmadamente: andou pela faculdade exibindo umas olheiras horríveis por baixo dos olhos azuis congestionados, deixou de aparecer à hora das refeições, faltou às aulas… E eu fiquei estarrecido. Porque sempre pensara que era eu que a amava, e não ela que me amava a mim. Que surpresa descobrir que fora exactamente o contrário.»

.
A segunda transcrição tem outro motivo ou intenção. Não resisto a ela, embora me tenha contido na sua extensão:

.
.
.
2.- «Eu fazia parte da subcomissão parlamentar encarregada de investigar o escândalo dos concursos televisivos. A missão perfeita para um criptossocialista como eu: logro publicitário à escala nacional, exploração do público inocente, empresas implicadas em operações fraudulentas – em suma, a boa e velha ganância capitalista.»

quarta-feira, julho 28, 2010

O Complexo de Portnoy - 1

Este livro de Philip Roth é surpreendente. Sem ter nada de imprevisível. Mas que livro deste autor não é surpreende e não passou a ser previsível?
O Complexo de Portnoy é uma longa sessão de análise de um jovem judeu estado-unidense, decerto deitado no divã freudiano, em que ele vai contando a sua vida, tendo o livro como antefácio o diagnóstico (ou definição do chamado "complexo de Portnoy"), feito pelo psicoanalista, que apenas participa no livro com esse diagnóstico e a última e única frase do último capítulo (O FINAL DA ANEDOTA): “Muito bem (disse o médico). Então àgorrra podemos talvez começarr. Sim?”
Uma nota prévia a este escrito compulsivo sobre o livro de Roth acabado de ler: Portnoy complaint foi publicado em 1969, e só agora – em 2010 – o temos em edição portuguesa. Em 1969, Roth só tinha mais dois ou três anos que o seu Alexander Portnoy (33 anos), o que coloca este livro na linha de O animal moribundo e de Exit-o fantasma sai de cena – ou melhor: coloca estes na linha daquele –, convocando à leitura em simultâneo dos três (ou só de Exit e O Complexo) para se ter o retrato confrontado de uma vida.

O Complexo de Portnoy é um romance auto-biográfico, mas não biográfico, da juventude de um judeu nascido em Newark, que com trinta e poucos anos tem já com a extraordinária (para mim, genial) capacidade de nos contar como era a vida do(s) personagem(s) e como era o meio em que ele vivia, o mais estreito – a casa, a rua, a cidade – mas também o mais largo, tudo o que envolve uma vida.
Demorei muito tempo a lê-lo. Não por o estar saboreando. Pelo contrário. Por a sua leitura começar por me ser incómoda. Eram demasiadas punhetas, demasiadas conas, demasiadas pulsões sexuais sem o filtro da moderação da linguagem escrita. Era a análise pura e dura! Às vezes desagradável por excessiva. Título do 2º capítulo: Batendo punhetas, título do 4º capítulo: Obcecado pela cona. E os miolos condizentes com os títulos...
Passada essa barreira, de – curiosamente – raiz cultural judaico-cristã, foi a leitura que Roth me proporciona. Absorvente, fluida, conversada. Saboreada.
Acabada a leitura, diria que fiquei “freguês da análise”… mas agora é tarde porque há muito a faço, sem ajudas e sem divãs.
E fiquei impressionado, surpreendido, com a precoce lucidez do autor. Se não soubesse, e não confirmasse na ficha técnica, que O Complexo de Portnoy é de 1969, o nível de maturidade da escrita, o grau de lucidez nas leituras da realidade, o traquejo de “oficina” na construção do romance, levar-me-iam a aceitar sem rebuço que Philip Roth escrevera agora, nos seus 70 e alguns anos o que só poderia ter sido escrito, assim, quando tinha metade da idade.
Que mais dizer? Por impulso compulsivo mais nada.
Por outras motivações, apenas transcrever um ou dois trechos, e fazer justiça à excelência da tradução.