quinta-feira, outubro 04, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 59

Feita a paragem, aproveito a ainda embalagem, e passo já à continuidade do trecho:
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O tonus da nossa época, ou antes a espécie de ondulação psíquica, que se toma do panorama social, vem-lhe mesmo daí. Já a palavra tinha alguma coisa de impostura léxica. Com efeito, este vocábulo foi enxertado na raíz de mistérium, o mesmo é que arcano. Mistificar, na vera acepção, seria pois enganar mercê de processos escuros, pela calada, abusar da boa fé do próximo por artes de berliques e berloques. Quando os oráculos da antiga Roma recolhiam aos santuários e voltavam a dizer que os deuses lhes haviam comunicado tal ou tal desígnio, aqueles que por interesse ou auto-sugestão se não houvessem identificado com a pantominice eram vítimas de uma autêntica mistificação segundo a lei e a forma.
Mistificar tornou-se uma ciência, e lá temos os efeitos em palácio e noutros lugares. Por isso, D. Quixote é a sagrada escritura da rectidão e da pura verdade. E que mais não fosse, pelo inciso contraste de tais factos, uma vez erguida a máscara da pobre res humana, se torna trágica e constrangedor esta farsa larvada de irrisão e dor.
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E teríamos chegado à última paragem antes daquelas já transcritas oportunamente noutro lugar, sobre Portugal, a Espanha, a Ibéria. Aqui as retomaremos para terminar viagem. Longa, sim, mas também saborosa e a pedir que seja destacada e de outro modo tratada.

No cavalo de pau com Sancho Pança - 58

Se o trecho anterior poderia parecer demasiado datado, e por isso algo ultrapassado, este que segue, páginas 325/326, estará também datado mas parece que datado de agora:
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Hoje, a grande ciência está nos modos de aplicar a mentira. Depois que o homem aprendeu a exercer faculdades do livre exame e a determinar-se perante os fenómenos da natureza, bem decerto que começou a secretar, para isso que Julian Huxley chama o oceano sideral das ideias, intelligentia, ou o seu contributo psiquíco. Cada alma é como uma pequenina fonte que se vai lançando para o córrego, este para o rio, o rio para o mar. Ali se opera a concentração espiritual. Evidente se torna pois que alguns homens são Ebros e Niágaras, outros simples lágimas à superfície da terra. É nesse oceano que flutua toda a sorte de ideias, de opiniões audaciosas, de sistemas exaltados, desde a sabedoria milenária, cujos autores desapareceram há muitos anos ou mesmo há muitos séculos, ao saber crepitantemente actual, com as especulações dos poetas e dos artistas, em suma, a floração do espírito através das idades. O nosso cérebro sobrenada nesse plágio imaterial. Quem quer vai aí buscar o plâncton que lhe permite corporizar os seus conceitos originais, ou o modo de enriquecer a natureza em conhecimento, vontade moral, fé generatriz e até em exaltação e amor.
Deverá acrescentar-se - por honra da firma humana - que a história fazem-na os escrivães da puridade, os apaniguados dos poderosos, as gazetas afectas ou coactas, a literatura regida ou condicionada, e não nasce feita. Em tal grave operação mistificar tornou-se prática universal.
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Por vários motivos é de fazer aqui uma paragem. Por exemlo, por dimensão do texto que os posts consentem como não exagerado (e alguns já deixei...), porque este último parágrafo é dos que pede "páre, olhe... e pense". Tentarei voltar depressa...