segunda-feira, outubro 26, 2009

Leite Derramado, Chico Buarque - 4ª nota-transcrição

Estarei a repetir-me, ou é o autor que se repete porque o personagem se repete e repito o personagem (ou será o autor que eu repito?). Será que isto da velhice é repetir histórias já recontadas (ou requentadas?).

Não sei, mas tenho uma compensação (isto digo eu...) é que não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até ao fim da vida.


página 184:


"Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida."

domingo, outubro 25, 2009

Leite Derramado, Chico Buarque - 3ª nota-transcrição


"São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora. Nem sei se era muito moço ou muito velho, só sei que me olhava quase com medo, sem compreender a intensidade daquele meu desejo."


(páginas 138/139)


São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que nem sei em que camada da memória eu estou às vezes. Nem sei se agora sou muito jovem numa lembrança de ontem ou se, daqui a um tempo (quanto?), sou muito velho numa lembrança de há muitos anos passados, só sei que, numas vezes, me olho e vejo como um jovem com medo da vida e que, noutras vezes, me olho e vejo como um velho destemido perante a morte. Ou é o contrário: um jovem destemido perante a morte e um velho com medo da vida?
(Isto digo eu... enquanto me lembro... e de tanto me lembro!)

Caim e os ódios que Saramago concita


Caim é um romance. De um escritor chamado José Saramago.
Estava na fila, à espera de vez. Com dois com-correntes de muito peso á frente. Nada menos que um Roth – Indignação –, já começado, e logo entusiasmando desde as primeiras páginas, e um Luandino Vieira – O Livro dos Guerrilheiros – que muitas e acrescidas razões fazem prioritário.
Mas outras razões, e sem-razão algumas, se levantaram. E estou a ler Caim. Uma das sem-razões é a de que não me quero deixar cair na tentação de ignorar o romance ao vê-lo afogado na polémica aparentemente teológica, se deus, num romance, deve (ou pode) ser chamado filho da puta ou não, se Saramago tem o direito ou não de continuar nosso compatriota.
Saramago concita ódios. Porque é, (quase) consensualmente, um enorme escritor. Porque ganhou o Nobel. Porque se afirma comunista e membro do Partido Comunista (embora tantas vezes não o pareça, ou pareça ser do Partido Comunista-José Saramago – PCP-JS). Porque não foge a temas – ou até os procura – polémicos, e sobre os temas que a sua capacidade inventiva escolhe, romanceia com prodigiosa criatividade e manejo da língua escrita. Porque acicata frustrações em falhados que o álcool torna piores ainda. Porque tem aquele feitio que a idade, a doença e outras circunstâncias exacerbaram. Também talvez porque ele goste de estar no centro do mundo, e algo o empurre para se substituir ao deus em que não acredita mas que o formatou.
Nesta espécie de polémica que nos avassalou, não faltou quem tivesse vindo anavalhar canhalhamente o homem, ignorando deliberamente o escritor. E o romance.
Não entro nesse lodaçal. Estou a ler o romance. Como quem se refugia num canto da sua casa para não apanhar com salpicos da lama levantada pela pedra atirada ao charco.
Aqui voltarei com o livro lido.

sábado, outubro 24, 2009

Leite Derramado, Chico Buarque - 2ª nota-transcrição

"... Porque talvez tivesse a intuição de que em breve os tempos seriam outros, e meu pai jamais se prestaria a permanecer num tempo que não era o seu. (...)
Na política, a civilidade daria lugar ao cabotinismo e ao espalhafato, e tampouco vejo meu pai pedindo votos em praça pública, subindo em palanques, apertando a mão de populares, sorrindo para fotografias com a roupa suja de gordura."

(páginas 131/132)










O tempo trouxe-me a certeza de que os tempos são outros, que os tempos de hoje são (de) outros. Não me consinto é viver num tempo que não seja meu. Não nestes tempos que querem que eu aceite como se meus fossem.
Nestes tempos (de) outros, a política, a civilidade, o esclarecimento e o debate têm o espaço ocupado pelo espectáculo e pela ostentação, é o "vale tudo" que prevalece, não me vejo a pedir votos na praça pública a troco de promessas, a subir a palanque para discursos demagógicos, a jorrar ilusões em catadupa, a ir a festas a que não iria, a apertar mãos que não apertaria, a beijar crianças que não beijaria, a sorrir para fotografias em que estaria sizudo se não fosse tempo de eleições.
(Isto digo eu... e teria dito o meu pai)

sexta-feira, outubro 23, 2009

Reflexões lentas e curtas - leituras à margem das polémicas e da Bíblia

Não me contradito. Persisto e assino o já dito.
Não se discutem dogmas! Não se polemiza com dogmáticos.
Os dogmas aceitam-se ou rejeitam-se. Por princípio, rejeito-os; por proto-dogma, não os discuto, até porque o dogma é “um ponto indiscutível de uma crença”.
Posso (posso?) é perguntar, aos que aceitaram uns dogmas, se conhecem os dogmas que aceitaram.
Por exemplo, à margem da actual polémica suscitada pelo livro de José Saramago, há quem tenha vindo, prenhe de dogmas (decerto gémeos…), invocar os Dez Mandamentos como um “código de boa conduta”, e logo ali, expeditamente, excomungar o autor de um romance que não leu, expulsando-o de seu (e nosso) compatriota.
Pego só no último mandamento desse exemplar código de conduta... No 10º mandamento (aliás 17., no capítulo xx de Exodo, Antigo Testamento-II, 1961). Na redacção, tal como nesta edição, da Bíblia Ilustrada, das “tábuas da lei” entregues a Moisés, está: “não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a mulher do teu próximo, nem seu servo ou serva, o seu boi ou o seu jumento, nem nada que lhe pertença”.
Não desejar “a mulher do próximo”, ao mesmo nível da interdição de cobiçar a casa do próximo e de não desejar, do próximo, o servo ou a serva, o boi ou o jumento, ou qualquer outra coisa que a este pertença?!
Então… e se a mulher do próximo, reciprocamente, me desejar a mim – por estar próximo… – ou a outro, e não se considerar coisa possuída mas ser humano… apesar de ser mulher?!
Estarei a descontextualizar? Talvez. Mas o curioso é que as contextualizações e adaptações, para aggiornamiento dos textos, não obviam a que, em resumos actuais, se diga, enquanto "Lei de Deus", 10º - Não cobiçarás a casa do teu próximo e nem a mulher do teu próximo.
Conhecerá, o dogmático, o dogma? E a sua esposa, conhecê-lo-á… e aceita-o?
Se conhecem e aceitam... ponto final!

Leite Derramado, Chico Buarque - 1ª nota-transcrição

"Mais coisas direi. A mim mesmo… Tiradas do livro. Só três ou quatro."



Assim terminei, vai para um mês, o último "post". Sobre Leite Derramado, do Chico Buarque. Antes das legislativas e das autárquicas. Aqui não voltei, faltando às promessas (a mim próprio... porque só a mim as faço).

Passo em revista este "mês de loucura" e vejo que, apesar de tudo, não deixei de ler, de ter matéria para aqui vir. Mas, antes disso, cumpram-se as promessas.


pág. 96 de Leite Derramado:


"Então me desculpe, esqueça, dê cá um beijo. Vai ver que andei delirando, e de bom grado voltarei a falar somente de coisas que você já sabe. Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço de alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese da história se extraviar."


É para si próprio que um velho repete as histórias que conta do que viveu, como se estivesse a tirar fotocópias nessas máquinas que agora por aí há, repete para evitar que as hstórias se esqueçam ou se extraviem! (Isto digo eu...)