terça-feira, agosto 07, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 47

Quem muitos burricos quer tocar, alguns há-de deixar para trás. Não é verdade, cavalo de pau, que tantas vezes tenho deixado para trás? Mas nem por isso menos interessante tem sido a viagem. Para mim, para mim... Então, agora, chegámos ao cap. X, em que Mestre Aquilino conta da vida de Cervantes, das suas convicções religiosas e como acabou irmão do Santíssimo. Não me vou deter muito. Não porque não encontre que mereça transcrição, que muito há, mas porque se faz tarde. Só um pedacinho... da página 230:
__________________________________________
«.. Já ouvi (dizia o oficial do Santo Ofício que interrogava Cervantes, entre as duas partes de D. Quixote) que os partidários do amor desenvergonhado, o amor sem estola, o amor sem a sanção de Deus, se prevalecem da mesma doutrina do Sr. Miguel Cervantes. Imundo, e aceitá-lo seria a subversão da família a que a Igreja é particularmente atenta, como se vê pela consagração da trindade Jesus, Maria e José. Mas a disciplina, neste particular, já estava há muito estabelecida e, é-me lícito acrescentar, com a sua definição. Qual ela seja eu lho digo, pois parece ignorá-la: "Aquele que prometeu fingidamente casar com alguma mulher solteira não está por si obrigado a cumprir a promessa, mas a compensar o dano que daí nasceu. Porém, se com tal promessa induziu a moça a consentir na cópula, está obrigado a casar com ela, salvo se ela for de inferior condição. Por exemplo, sendo o homem nobre e ela filha de agricultor. Mas satisfaz, dotando-a. Agora, sabendo ela da desigualdade e consentindo na cópula, perde o direito ao dote, porque se infere que ela quis livremente ser enganada."
(...) Cervantes, posto que homem franco e leal, não era destituido de cautelas e manhas. Não trazia bentinhos ao pescoço como as pessoas compleicionalmente simples ou estudadamente cavilosas, empenhadas em tornar públicos os sentimentos de beneplácito comum, mas ia à missa e nunca faltava à mesa da Sagrada Eucarístia pela Páscoa da Ressurreição. Comportava-se, em suma, como um cristão-velho que não precisa de estar constantemente a bater no peito, de maneira ostensiva, para que creiam na sua religiosidade. Em sua consciência bem secretamente devia prevalecer-se de uma regra moral para lá da ética de qualquer credo.
_______________________________
E muito penou Cervantes. Porque "... há (nas páginas do D. Quixote) uma vegetação libertina que este santo tribunal não pode deixar sem correcção", advertiu duramente o oficial do Santo Ofício, antes da benevolente sentença ("...modere-se nas suas ambições de originalidade feitas à custa de irreverências, desacato do legal e sagrado, e da lei dos bons costumes..."). Teria sido por isso, pelas "cautelas e manhas", que algum tempo medeou entre a 1ª e a 2ª parte de D. Quixote (longo pousio lhe chama Aquilino, que tudo isto ficcionou no seu ensaio). Mas tudo acabou em bem... Na graça do Senhor e Cervantes "irmão do Santíssimo". Ah!, como ainda mais interessante poderia ter sido D. Quixote!...

Nenhum comentário: