domingo, agosto 05, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 46

É verdade que estas paragens são de outras "passagens". Mas valem a pena (isto acho eu). Mestre Aquilino detém-se, e detem-nos, a reflectir sobre justiça e juizes. Mas não se julgue que nos deixou apeados do seu cavalo de pau com Sancho Pança para ir ali e já vir. Não. As transcrições são o menos longas de que sou capaz mas levar-nos-ão ao sítio... Ora vejamos:
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Como exalçar a judicatura à sua verdadeira altitude? Pois, antes de tudo, é forçoso que o seu prestígio seja tal que nada de fora o ofusque, cerceando-lhe autoridade. Julgar o nosso semelhante é um acto de ordem transcendental, da máxima responsabilidade, já que toca na relojoaria delicadíssima e sempre problemática do eu, e não pretura de caracacá acessível ao primeiro quidam. A lei moral, essa que rege o homem na vida das relações, não tem princípio nem fim, e por conseguinte devia estar ao abrigo do acidental no plano movediço dos Estados. Mas com a desvirtuação que o mundo vai sofrendo, porventura efeito da viragem que se está a operar no seu âmago, também ela oscila como um cata-vento. Moisés se voltasse hoje quebraria infalivelmente as tábuas de bronze na cabeça dos príncipes.
(...)
A justiça de Sancho correspondia a essa magistratura incodificada, impressionista e animada do desejo de acertar, como a exerceria um sátrapa oriental debonário, desprovido de paixões e igualmente sem desejos. A única diferença é que o senhor governador da Baratária não mandaria por nada deste mundo cortar o pescoço a ninguém, nem meter um cidadão na cadeia por dez réis de mel coado. Governar para ele cifrava-se em arbitrar equidade.
Sancho chegou, sentou-se, logo às primeiras horas do Consulado, na cadeira de juiz - silla del juzgado - e entrou a responder com argúcia de Édipo à perguntas sibilinas que lhe fizeram, Não o embaraçaram as causas mais árduas, que na jurisprudência oficial de qualquer país culto, metido nos varais do Código, daria água pela barba a advogados e juízes, com grande desbarato de selos e papel azul. Porventura o agrado com que vemos brotar os veredictos daquela cabeça de aldeão, socorrido apenas pelo bom senso, derivará do frescor que traz aos nossos hábitos enfastiados de formal, óculos pretos, tossicação de má higiene, becas, Pandectas e diabo a quatro, aquela magistratura viva e de boa vontade. E Sancho conquista-nos pela simplicidade, antes de o admirarmos pela esperteza.
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Como (quase) sempre, é forçado que páro e me apeio. Mas tem de ser. E longo foi o caminho, embora encurtado, que nos trouxe da justiça e dos juízes à governança. Na "tese" aquilina de que governar bem deveria ser arbitrar equidade. Discutível? Decerto que sim, mas só por não poder ser tudo. E não por nos separarem algumas décadas da altura em que o ensaio foi escrito, porque o tempo míngua se nos colocamos na perspectiva de séculos e milénios de humanidade, e no tempo abreviado muita coisa escrita ontem serviria à medida para coisas de que hoje se gostaria de saber escrever. Com a arte que Aquilino maneja para contar o episódio dos dois velhos demandantes em que Sancho, Governador da Baratária, administrou justiça.

Um comentário:

GR disse...

Sempre textos fabulosos e de grande reflexão!
Como o grande Aquilino se sentiria com a nossa actual Justiça! Ficaria triste e abespinhado e o escreveria!!!
Bastou largos meses ou poucos anos para que a nossa Justiça, se tornasse injusta, confusa e tendenciosa.
Ou será;
«… com a desvirtuação que o mundo vai sofrendo, porventura efeito da viragem que se está a operar no seu âmago, também ela oscila como um cata-vento.»
Por essa razão Aquilino era o Mestre, o grande Aquilino Ribeiro.

GR