sábado, agosto 04, 2007

No cavalo de pau com Sancho Pança - 45

Depois de, por razões de oportunidade, termos ido a cavalo neste já inseparável companheiro, mais adiante ao fim do livro e a outras paragens (ao anónimo do séc.xxi), volta-se ao rame-rame desta longa viagem. Que se não tem estímulos e derivativos pode enfadar e fazer desistir. Mas não! Para mais, chegados que estamos a uma altura em que Mestre Aquilino se dedica - e a fundo - a dissertar sobre a justiça e a sua administração. Ora veja-se só este excerto, antes de a outros chegarmos, na pág. 208:
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(...) Com os tempos, promulgadas as leis ao sabor das conveniências partidárias, cada filósofo edificando o seu sistema como cada sapateiro batendo a sua sola, julgar tornou-se um mester, tendo perdido o carácter primevo de vocação e austera dignidade. Na tentacularidade das profissões e artesanatos, o juiz é um funcionário público e a justiça um artigo de manipulação. Uma sentença é aviada como uma receita de botica. Numa palavra, a magistratura tornou-se uma carreira lotada e graduada como qualquer outra da vasta burocracia. Em consequência, tem as suas tabelas e os seus cânones à maneira dos índices farmacopaicos. Era inevitável talvez. Todavia, para que na prática não descambasse numa função puramente mecânica, regendo-se pelos artigos do Código como um secretário de Finanças pelos conhecimentosdas matrizes, seria indispensável que gozasse de franquia plena e que do emaranhado das leis, contraditórias algumas vezes, aptas no geral à rabulice, mal expressas, omissas não raro, se ressalvasse um princípio sem o quê tal competência é logro: é que há uma verdade em todos os pleitos humanos, quer dizer, um fundo de razão suprema, de acordo com a ética, de Pedro contra Paulo. (...) A lei que o obriga a contrariar o ditame que lhe aponta a consciência torna-se uma monstruosidade moral, degradante em todos os sentidos. Ipso facto, o juiz deixou de ser juiz para ser um simples mesteiral, empregado taxativo como esses que vêm à nossa porta ler o contador da electricidade e da água e nos passam a nota de consumo. (...) O magistrado deve gozar de independência absoluta perante o mundo e particularmente perante os políticos para não atraiçoar a sua missão.
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E Mestre Aquilino, embalado, continua. E continuarenos nós. Mas é tempo para uma paragem, até para digerir tanto fel que Aquilino, ao tempo, teria razões de sobra para verter (e que pensaria disto o seu filho juiz?!), e outros azedumes que ele possa ter levantado, como o de farmaceuticos, decerto nada agradados por assim se desvalorizar (aliás, como por outros lados e nestes tempos se faz) a nobre tarefa de aviar receitas em boticas...
Breve retomaremos este momento tão interessante do ensaio.

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