domingo, agosto 31, 2008

O poeta que merecia a vida

Num outro canto do Rossio, no vértice do quadrilátero oposto ao da estação, eu, vindo do lado oriental da cidade, também fazia por merecer a vida.
Não o sabíamos, mas talvez o adivinhássemos, e desejássemos que tivesse sido aquela a razão para a nossa ausência, no dia preciso e exacto, primeiro de Maio de 1962, para faltarmos no gabinete onde trabalhávamos, secretária com secretária, no 6º andar da Rua Braancamp, e estarmos ali. No Rossio. Gente, massa.
Na minha célula do Partido já falara, com admiração e entusiasmo juvenil (tinha 26 anos!) do meu companheiro de gabinete. Em resposta, tivera reticências, reservas. Nada explícito mas… “nada de confianças … esteve preso e há muita coisa por esclarecer… vou informar-me melhor, mas tem cautela… não te abras com ele…”.
Ficara surpreso, de sobreaviso. Era, no entanto, tão caloroso, tão camarada o nosso relacionamento… Decerto, pensava eu, tratava-se de algum mal entendido.

No Pátria, lugar de exílio estava, talvez..., a resposta. Em quatro versos depois da 3ª canção:
.
Um poeta
roeu as unhas enquanto foi possível
mas faltou-lhe a coragem no momento derradeiro
nós sabemos porquê

.
Quatro versos no meio de um dos (tantos!) momentos empolgantes do poema:
.
Somos a alegria . o corpo e o sal da terra
o sol das manhãs férteis . a música do outono
a própria essência do amor . a força das marés
somos o tempo em marcha
.
Esta é a única verdade
sabemos que vos é difícil aceitá-la
envoltos como estais em suborno e usura
bancos alta finança empréstimos externos
E no entanto esta manhã um pássaro
pousou à vossa beira . embora
inutilmente
.
A pequena dactilógrafa matou-se
nós sabemos porquê
.
Um carpinteiro desempregado rasgou a roupa
e saiu cantando para a rua
nós sabemos porquê
.
Uma noite
a jovem costureira não voltou para casa
nós sabemos porquê
.
Um poeta
Roeu as unhas enquanto foi possível
mas faltou-lhe a coragem no momento derradeiro
nós sabemos porquê
.
Nós sabemos porquê
.
NÓS SABEMOS PORQUÊ
.
E no entanto é doce dizer pátria
sonhar a terra livre e insubmissa
inteiramente nossa
Sonhá-la como se pedra a pedra a construíssemos . Como
se nada houvesse antes de nós
e desde as fundações a erguêssemos completa
pura alegre acolhedora virgem
de medos . mortos insepultos
.
Regresso pelo tempo ao dia de hoje
primeiro de Maio de 1962
hora segunda da meditação
.
.
Regressado estava Daniel Filipe. Ao dia de hoje, no dia de hoje, que era o primeiro de Maio de 1962. Na sua "hora segunda da meditação". Podendo depois, finalmente, sorrir sem amargura. O poeta merecia a vida.

2 comentários:

Justine disse...

Merecia, pois!
Pungente e exaltante, todo este post.

Maria disse...

Merecia, claro. E eu fiquei arrepiada com este post....