segunda-feira, setembro 01, 2008

Pergunto . poderias ter sido de modo alheio?

Não esperava que esta viagem pela Pátria, lugar de exílio desse no que deu. Era para ser um leve recordar de um dos livros que muito me marcaram e que se vai buscar à estante, mais uma vez, para scanear uma capa, folhear, fazer uns comentários, "postar".
Foi muito mais que isso. E muito mais foi poderia se não decidisse parar.
Trago a dedicatória que comoveu, a saudade do amigo que, aos 39 anos, morreu.










"Com a camaradagem e a amizade do"! Em Março de 1963, já eu tinha saído da SN há alguns meses, mas mantinham-se a amizade e os contactos.
Fui preso em 17 de Maio de 1963. E já não voltei a ver Daniel Filipe!. Morreu em 1964, estava eu em Caxias.

Como penúltima das transcrições (mais que discutíveis, só justificadas por critérios de memória e de subjectividade), não de Pátria, lugar de exílio mas do livro, o poema I do conjunto de poemas O Viajante Clandestino:
.
No exacto automóvel, viajamos.
Em corpo e nervos, sal, angústia, grito.
Suor, temor da noite, aonde vamos?
Direita, esquerda? (Cruzamento). Hesito.
.
Onde? Por onde? Somos dois, calados.
A chuva alaga o universo à volta.
À beira d’água, acenam-nos soldados.
Soam no escuro os passos de uma escolta.
.
Finco as mãos no volante. Derrapagem
.– ou medo apenas do que vai contigo?
Já está próximo o termo da viagem.
Apertamos as mãos. «Saúde, amigo».
.
O relato poético de um “transporte” nesses tempos de clandestinidade e de clandestinos, em que os que não o eram tinham tarefas de apoio.
E termino, porque tem de ser!, com um pequeno trecho em que não falta sequer o nome do camarada que, na clandestinidade, foi preso depois das grandes manifestações de 1 e de 8 de Maio de 1962, e que Daniel Filipe trouxe (só para o poema o teria transportado?) para o poema em que cantou, quase um ano depois, o primeiro de Maio de 1962:
.
Pergunto . poderia cantar de modo alheio
dizer outras palavras como quem diz bom dia
poderia acaso ignorar o tempo a tortura a prisão
Bernardino e a pequena rosa
vermelha e orvalhada
insólita no tablier do automóvel azul
.
Poderia falar dos dias impossíveis
das manhãs sem revolta . do xadrez matemático
jogado interminavelmente
das virgens . dos poentes . do mar da minha infância
.
Poderia escrever meu amor e pensá-lo
Sem mais nada . sem a rubra mancha de sangue na parede da cela
Sem um nome ou um grito
.
.
Pergunto. Poderias, Daniel, ter sido de modo alheio?, teres cantado, falado, escrito, sem o teres feito como o fizeste? Só magoa ter sido tão curto o tempo,

2 comentários:

Maria disse...

Comovente é este teu post.
Poderão passar mais 45 anos, que a memória mantém-se sempre.
Não quero deixar aqui mais palavras, correria o risco de ser piegas.
Deixo-te um abraço apertado..

(ah, esta coisa dos sentimentos...)

Justine disse...

O Daniel Filipe, nós e tu! Todos merecemos este post de clareza, de ternura e de memória, para que ele seja cada vez mais compreendido, lido, amado e nunca esquecido.