A chegada de Filipe II a Lisboa, em 1580, e esses 80 anos de Portugal parte de Espanha, coincide com muito da vida de Cervantes. E Aquilino faz dessa coincidência motivo para páginas que muito fazem pensar. Por agora, fica uma transcrição da página 92... mas há tantas e tantas outras que mereciam ser transcritas (e algumas serão) sobre o tema da Ibéria, de Espanha e de Portugal, dos portugueses e dos espanhois:
"Miguel de Cervantes teve então lugar e tempo de se impregnar da cidade. Na novela póstuma Persiles y Sigismunda decantou-a como a primeira e maior do mundo, a mais amena, mais amável, mais digna, pelo sítio, pelo céu, pelos moradores, de ser habitada por um casal feliz. E porventura os dias lhe corressem propícios e alados, pois que suprema consolação, para um homem ou cão batido, é não os ver correr. Quando há cidades que se fica a amar para sempre é porque naturalmente a vida não teve as mãos ferradas no pescoço daquele que lá viveu. Quanto às povoações que se detestam, é porque à sua lembrança se reacende o revolvedoiro das fezes. Lisboa ficou para ele a terra marcada no calendário como uma pedra branca. Como Lisboa foram seus amores Sevilha, Toledo, Barcelona. Hermes tinha-lhas mostrado na encruzilhada dos caminhos, com a face a flectir para a direita.
"O que ele diz de enormidades simpáticas, de mentirosas virtudes, de falsos dons acerca de Lisboa, a pobre cidade pestiferada, com cadáveres de negros e escravos a apodrecer a céu aberto sob núvens de moscaria ondulante, andadores de almas e frades mendicantes de hábito roto inçando ruas e praças, cheiro de carne queimada nos autos-de-fé a impregnar a atmosfera, excede a melhor disposição de alma, disparada às fantasias. Soube ele em Lisboa o que isso era?"
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