(...)
Ziffel
(…) Eles não tinham compreendido o sentido da palavra democracia. Eu quero dizê-la no seu sentido literal: poder do povo.
Kalle
A palavra “povo” é um termo muito particular, isso nunca o chocou? Não tem o mesmo sentido dentro e fora. De fora, em relação aos outros povos, os grandes industriais, os fidalgotes, os altos funcionários, os generais, os bispos, etc., fazem naturalmente parte do povo alemão e não de um outro. Mas no interior, lá onde está o poder, você ouve sempre esses senhores falar do povo dizendo: “a turba”, “a gentalha” ou “a gentinha”, etc.; eles não fazem parte do povo.
O povo bem devia falar a mesma linguagem e dizer que esses senhores não fazem parte do povo.
Então a expressão “poder do povo” teria todo o sentido, completamente racional, reconheça-o.
Ziffel
Mas isso não seria um poder democrático mas uma ditadura do povo…
Kalle
Exactamente: seria a ditadura de 999 sobre o milésimo.
Ziffel
Isso seria o bom e o bonito se não significasse o comunismo. Você tem de admitir que o comunismo reduz a nada a liberdade do indivíduo.
Kalle
Você sente-se livre?
Ziffel
Não particularmente, se me põe a questão assim. Mas porque deveria trocar a falta de liberdade em regime capitalista pela falta de liberdade em regime comunista? Parece que você aceita, de qualquer maneira, que há falta de liberdade em regime comunista.
Kalle
Sem qualquer dificuldade. Não vou estar com charlatanices. Ninguém é totalmente livre quando detém o poder, muito menos o povo. Também não o são os capitalistas, que é que pensa? Não são livres, por exemplo, para deixar um comunista instalar-se como Presidente da República. Ou para fabricar a roupa que é necessária, quanto muito fabricam a que possam vender. Por outro lado, em regime comunista, não é permitido deixar-se explorar: ora aqui está uma liberdade suprimida.
Ziffel
Deixe-me dizer uma coisa: o povo não toma o poder a não ser em caso de necessidade extrema. O que resulta do homem só pensar em caso de extrema necessidade. Quando a água lhe chega ao rés do pescoço. As gentes têm medo do caos.
Kalle
Não é medo do caos... eles acabarão por se encontrar em caves, nos baixos de casas bombardeadas, tendo, nas suas costas, SS de revólver em punho.
Ziffel
Não terão nada na barriga, não poderão sepultar as suas crianças, mas a ordem reinará e quase não terão necessidade de pensar.
Ziffel empertigou-se. A sua atenção que, durante as divagações políticas de Kalle, tinha esmorecido, reanimou-se.
Ziffel
Não queria que ficasse com a impressão que critico essa gente. Pelo contrário. Ser lúcido é difícil. Todo o homem razoável evita-os quanto pode. Em países como aqueles que conheço, onde uma tal dose de reflexão é indispensável, não é possível viver. Aquilo a que chamo viver...
Emborcou o seu copo com ar ansioso. Pouco depois, separaram-se, afastaram-se cada um para seu lado.
(Ah!, como eu gostaria de "pôr isto em cena",
encenar e - sei lá... - fazer de Ziffel ou de Kalle,
dar corpo a estes personagens!)
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