Tendo nós chegado ao ponto em Cervantes cria D. Quixote muito à sua própria imagem, quase como um seu retrato ficcionado, E encontramos Mestre Aquilino a, por vezes, mostrar alguma irritação pelo que chama os "devotos de Cervantes". Como se, por se gostar do que alguém escreve, se tenha de vangloriar o autor do que foi escrito, não como escritor mas como homem. Temos, agora e em Portugal, Saramago e Lobo Antunes que poderriam servir de exemplo para a necessidade de separar os homens dos escritores, com critérios de avaliação que nada têm a ver uns com os outros. Mas vamos lá à página 161:
Em geral os devotos de Cervantes, no intuito de exalçar o ídolo, procuram riscar da uma vida e carreira tudo aquilo que traga a marca do trivialmente terrestre, como sejam amores de ocasião e as necessidades económicas que o compeliram a curvatura de espinha lamentáveis e ainda o que se chama hoje indelicadezas em matéria de dinheiros públicos. Ora a vida é inimiga do heróico ao contrário do pensamento divinizador. Cervantes poderá não encarnar o homem de rígido carácter que se comprazem em ver nele os Catões do lado de lá da fronteira; nem um católico fervente como gostariam de apresentá-lo curas e ultramontanos; nem um tradicionalista ferrenho ao paladar do requetés. Mas ninguém nega que dispôs de admirável fantasia e D. Quixote é um dos luzeiros acesos na marcha titubeante da humanidade através da sua longa, ínvia e tantas vezes tenebrosa caminhada. Poderá não inculcar-se como modelo acabado de cidadão, nem ele concorreu a tal categoria, sempre ficará, em despeito dos seus altos e baixos de humano, um príncipe do pensamento e da moral literária. Mas este afã com que acepilham a pessoa, a alindam, a desbastam do terrenal, como que obedecendo a um mandato subconsciente, vem dar razão a quem vê no D. Quixote o símbolo da Espanha, sequiosa de absoluto e nada compreendendo para fora destas coordenadas.
Cervantes, homem pobre, prezando a vida no que tem de materialmente fruidor, nunca a logrou a seu gosto.
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