segunda-feira, março 02, 2009

As andorinhas e o amor em matéria de ensino



Pennac! Acabado o livro, há uns dias, continuo "sob influência"... À medida que o tempo passa, depois do saborear, apetece voltar a ler. E a ler volto. Apetece traduzir. E traduzo. O intraduzível! Em texto livre e, obviamente, sem a qualidade literária do que traduzido é. Mas vale a pena. Isto digo eu... E até porque as andorinhas estão a chegar.


As andorinhas e o amor em matéria de ensino

Adormeci tarde, sobre uma página deste livro. Acordei apressado em o continuar. Preparo-me para saltar da cama mas uma subtil barulheira trava-me. Há um desaustinado voajar à volta da casa. Pipilares e mais pipilares, ao mesmo tempo intensos, constantes e contidos. Ah! pois… é a partida das andorinhas!
Todos os anos, por esta altura, elas marcam encontro nos fios da electricidade. Campos e bordas das estradas cobrem-se de despedidas, como numa imagem habitual, para fotógrafo amador. Preparam-se para migrar É a euforia dos reencontros e das partidas. As que ainda voltejam no céu pedem autorização para se alinharem com aquelas já pousadas nos seus lugares nos fios, excitadas pelo desejo de horizonte. Arrumem-se, vá, toca a andar! Já vai, já vai! Há um frenesim de voos de chegada, de voos de falsas partidas, de tudo a postos, aos seus lugares... Uma agitação que vem do norte, em batalhões hitchcockianos, rumo ao sul.
Ora, essa é precisamente a orientação do nosso quarto: norte, sul. Uma clarabóia na parede virada a norte, uma dupla janela na parede virada a sul. E todos os anos o mesmo drama: perturbadas pela transparência dessas aberturas envidraçadas, e em frente uma das outras, um bom par de andorinhas atiram-se de cabeça contra a clarabóia. Por isso, nada de escrita esta manhã. Abro a clarabóia norte e a dupla janela sul, e mergulho na nossa cama. E ali ficamos nós ocupados por uma manhã em observação de esquadrilhas de andorinhas a atravessarem este nosso esconderijo, de repente silenciosas, intimidadas talvez por estes dois corpos alongados que as vêm passar em revista.
Só que, de um lado e de outro da dupla janela, ficam dois estreitos e verticais pedaços de parede. O espaço aberto é largo entre as duas molduras das janelas que dão passagem à vontade a todos os pássaros do céu. Mas… nunca falha, há sempre três ou quatro idiotas que chocam com a parede entre as janelas. São as desalinhadas, as que não seguem o caminho direito e aberto. As que passam ao lado, batendo as asas.
Poc! Ei-las caídas no tapete.
Então, um de nós dois levanta-se, pega na aturdida andorinha na concha da sua mão – não pesam nada, esses ossos cheios de ar –, espera que ela acorde, e encaminha-a a juntar-se às companheiras. A ressuscitada, ainda um pouco grogue, ziguezagueia no espaço reencontrado, depois pica a fundo para o sul e desaparece no seu futuro.
.
E pronto!, a minha metáfora vale o que vale mas é a isto que se assemelha amor em matéria de ensino, quando os nossos alunos voam como pássaros loucos: fazer sair do coma escolar uma caterva de desorientadas andorinhas.
Nem sempre se consegue, falha-se por vezes no apontar do rumo, algumas não acordam, ficam no tapete ou partem o pescoço na vidraça mais adiante; e permanecem nas nossas consciências como buracos de remorsos onde repousam as andorinhas mortas no fundo do nosso jardim, mas temos sempre de tentar, nós temos tentado. Eles são os nossos alunos.

5 comentários:

Justine disse...

Excelente texto do Pennac, excelente tradução tua!

samuel disse...

Muito bonito!
A Maria de Lurdes ainda se lembrará de que existem andorinhas?

Abraço

Maria disse...

Que texto mais lindo...
Pois é, andorinhas...

Obrigada, Sérgio. Este momento deu-me muito gozo.

Beijo

Anônimo disse...

...esse texto excedeu a minha capacidade de suportar o belo.

Sérgio Ribeiro disse...

Fiquei mesmo contente com estas "visitas". O Daniel Pennac merece-as e até sinto remorsos por o estar a divulgar tanto quanto devia.
Abraços amigos.