quarta-feira, fevereiro 18, 2009

A "efeméride do dia" - 3

De páginas 139 a 142 de Álvaro Cunhal, Obras Escolhidas – II – 1947 – 1964:

«6 de Outubro de 1951

Ex.º Senhor Director da Cadeia Penitenciária de Lisboa

Álvaro Cunhal, preso nesta Penitenciária, vem, perante V.Ex.ª, expor o seguinte:

1. Foi-me hoje devolvida uma carta, que tinha escrito a minha família, com a indicação de não poder seguir, por conter “ciência comunista”. Dada a minha surpresa e o meu pedido para me serem indicadas as passagens da carta que motivaram essa opinião e a decisão correspondente, fui esclarecido que se tratava de tudo quanto nela se dizia acerca da obra de Darwin. Embora eu soubesse o que tinha escrito e, como sempre, me tivesse esforçado (dada a minha situação) para não dizer tudo quanto penso, fui ler e reler a carta censurada. E se, ao ser-me comunicada a decisão acima referida, senti apenas surpresa, depois de nova leitura do que tinha escrito fiquei verdadeiramente perplexo.
2. Se eu tivesse abordado, em volta das teorias darwinistas e à base do marxismo-leninismo, alguns dos problemas cruciantes da sociologia contemporânea; se, em confronto com Darwin, tivesse abordado as formas de selecção na sociedade dividida em classes e aproximado a selecção natural da luta de classes; ou se, contra Darwin, tivesse mostrado como a exploração económica e a opressão política levam muitas vezes à “selecção dos piores”; ou se tivesse abordado o problema da revolução proletária, do socialismo, do desaparecimento das classes e da evolução subsequente da espécie humana; ou se tivesse mostrado como a
struggle for life darwinista não era mais que a concorrência e a luta na sociedade burguesa transplantada para o reino animal e vegetal e uma verdadeira declaração de guerra da burguesia ao proletariado; se tivesse estudado à luz destas noções a sociedade portuguesa contemporânea e alguns aspectos da política seguida actualmente em Portugal – então bem justificado seria que V.Ex.ª considerasse existir na minha carta uma exposição de ideologia comunista. E, dado o regime de falta de liberdade existente em Portugal, seria para mim compreensível que, nesse caso, exercesse a sua censura. Mas, quando tem havido e continua a haver da minha parte o cuidado de não só afastar dos meus estudos problemas como os apontados, como de não abordar na correspondência que possam ser levadas à conta de “políticas”, sinceramente digo que não compreendo a decisão.


(continua)

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostava de ter visto a cara do tal Ex.º Senhor Director da Cadeia Penitenciária de Lisboa ao ler a carta!! :-D

samuel disse...

Peça fantástica!