terça-feira, janeiro 05, 2010

No Comboio Nocturno...

No princípio, foi o gesto. Da oferta e da dedicatória amigas e solidárias. Só depois foi o verbo, foram as palavras. Da dedicatória. Das 400 páginas do livro. Das 400 páginas de Comboio Nocturno para Lisboa, que me acompanhou nas viagens deste mês. Umas para longe, outras antes de fechar a luz para adormecer.
Não sei se o livro tem muitas referências nos locais em que se escreve sobre livros. Por razões (e sem razões também) ando afastado dessas leituras. Mas tenho indícios de que está a ser um êxito de edição. A quem falo dele me respondem que já o conhecem. Alguns porque o têm… nenhum porque o tenha lido ou querido comentar. A edição portuguesa que me foi oferecida em meados de Novembro é a 3ª edição, a brasileira (Trem da noite em vez de Comboio nocturno…), está bem visível nos escaparates, e folheei-a na casa dos amigos que o tinham comprado, até para confrontar pedaços das traduções.

Um livro… interessante. Muito significativo do tempo que vivemos. E não me refiro aos anos, talvez nem às décadas. Refiro-me ao tempo sem medida certa que vivemos.
O autor, o narrador, o(s) personagem(ns) vivem e especulam sobre a sua existência. Enquanto é, e para depois de ser. Como indivíduos. Relendo a dedicatória, ncontrei lá, no livro, a natureza humana, é certo, mas bem limitada, bem confinada à individual natureza humana. E creio eu estar certo de que há uma segunda natureza humana, que é a condição social, a que transcende o indivíduo que cada um de nós é.
Está ela, esta segunda (but not the least!) natureza humana, ausente do livro? Claro que não, claro que não poderia estar. Mas faz figura de figurante, de paisagem, de cenário em que se movem os personagens. Cada um, um. E cada um à procura de si. De si próprio.
No livro, há parcelas. Mas não se vêem somas, a não ser ao longe, e reduzidas a simples conjuntos de parcelas. Não outra coisa. Somas, qualitativamente diferentes das parcelas!
A definição do substrato do livro – que ensaio filosófico, ou de filosofia, é – está no discurso (Reverência e aversão perante a palavra de Deus) do personagem central que, ao terminar, diz, em jeito de ameaça "E que ninguém (quem?, Deus?) me obrigue a escolher". Mas poderia/quereria ele escolher, poderá/quererá cada um de nós escolher? Ou poderá, cada um de nós, não escolher, ou escolher não escolher?
Aliás, e em parênteses, devo dizer que a evolução e degenerescência Amadeu Prada é muito bem dada. Porque “escolheu” não deixar de ser o que era! Ou, melhor dizendo, não teve força para deixar de ser o que era, um indivíduo do/no mundo das catedrais e, noutra acepção, da classe dominante, com incursões diletantes por posturas de resistente.
Não me vou alongar. Só duas ou três notas sobre um dos motivos da oferta amiga: o meu testemunho vivo, vivido, “desse tempo”.
No livro – interessante, interessante – só há resistentes, não há resistência, não há colectivos e suas dinâmicas, e quando se pretende (se se pretende) lá chegar, talvez através do João Eça, falha em toda a linha; no livro, não há repressão, há repressores, há “homens maus”, há esbirros como o personagem bizarro do Mendes (e acólitos que aparecem em aulas de alfabetização…).
A dramatização do triângulo amoroso/passional Jorge-Estefânia-Amadeu através da decisão de executar quem, por saber demais, poderia pôr em risco a resistência, e a decisão (por amor, por paixão? porquê?) de não o fazer é… caricata.
O Tarrafal tem um relevantíssimo significado na nossa História, recente ou não. Foi a criação do campo da morte lenta, em 1936. Foi o clímax/símbolo da repressão fascista. Mas… o último preso foi transferido em 1953 (Francisco Miguel para Caxias), e o campo foi oficialmente fechado em Janeiro de 1954, tendo sido reaberto em 1962 apenas para os presos das colónias e em razão (!) da guerra colonial.
A figura do juiz, pai de Amadeu, só teria alguma coerência se fosse juiz do chamado Tribunal Plenário, criado para julgamentos políticos (antes deles era em tribunais militares), porque as instituições judiciais não estavam directamente ligadas à repressão fascista. O tal “Tribunal Plenário”, enquanto existiu (de 1945 a 1974, em Lisboa e no Porto) foi constituído por meia dúzia de juízes, escolhidos “a dedo”.
O autor, sem prejuízo da erudição que fundamenta as suas reflexões e do seu evidente interesse por esse período da História de Portugal poderia (e deveria) ter-se informado minimamente para não ser tão pouco (ou nada) rigoroso com figuras e factos que refere e que são históricos.
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Foi uma boa leitura a partir de um gesto que muito me tocou.